O Senado aprovou na última semana o projeto que regulamenta o mercado brasileiro de créditos de carbono, com objetivo de diminuir as emissões de gases do efeito estufa no país. A senadora Leila Barros (PDT-DF) atendeu a bancada ruralista e excluiu o agronegócio das obrigações previstas pelo Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).
O texto, que segue para discussão na Câmara, foi criticado por movimentos sociais e populares da Amazônia pela falta de salvaguarda aos direitos dos povos indígenas e tradicionais do bioma, que já são prejudicados por projetos fraudulentos de compensação de emissões em seus territórios. Outro problema apontado foi o fato de deixar de fora a agropecuária, que no país é responsável por 75% das emissões de metano, um dos principais gases de efeito estufa, ao lado do carbono.
Uma das referências na discussão de crédito de carbono no país, Guarany Osório, doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que a melhor alternativa seria manter o agronegócio no projeto, mas classificou a aprovação como um avanço positivo que deve ajudar o Brasil a reduzir as emissões.
“A Amazônia é cheia de complexidades. É preciso olhar e dar voz para as diferentes populações que ali vivem. O processo de escuta tem que ser feito de baixo para cima”, ponderou o especialista.
Como funciona o modelo aprovado pelo Senado
A regulamentação aprovada pelo Senado determina que o Brasil crie uma governança pública para instituir o mercado oficial de crédito de carbono, que estabelece um limite para empresas que emitem 10 mil ou mais toneladas de carbono por ano e permite o comércio de licenças dos direitos de emissão.
“Vai ter um teto de emissão para todo mundo. No final de um determinado período, todo mundo vai ter que apresentar uma cota para cada tonelada que emite. O projeto cria toda a governança para instituir um mercado de carbono que coloca um limite de emissões e permite o comércio de licenças de direito de emissão”, afirma Guarany Osório.
Em uma situação hipotética, uma indústria que libera na atmosfera 10 mil toneladas anuais de carbono teria que diminuir as emissões, por exemplo, em 10%. Para cumprir a meta, ela poderá comprar títulos de créditos de carbono emitidos por empresas que conseguiram reduzir suas emissões.
No documento intitulado Parecer dos Povos, disponível aqui, 28 organizações da sociedade civil do campo popular – sindicatos, movimentos sociais e representantes de povos e comunidades tradicionais – afirmam que a regulamentação desse mercado não pode contar apenas com especialistas, políticos e representantes dos setores econômicos interessados.
“Isto porque em jogo não está apenas a construção de um nicho de mercado, e sim a garantia de que direitos humanos não serão violados, bem como a proteção da integridade ambiental, que, por sua vez, é irredutível ao carbono, englobando outros saberes e modos de vida interdependentes à natureza”, alerta o Parecer dos Povos.
Entre os signatários estão a Marcha Mundial das Mulheres, Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento Camponês Popular (MCP) e Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Fonte de violações, mercado “paralelo” de créditos de carbono preocupa movimentos
Pelo texto aprovado, o mercado oficial de gases do efeito estufa estará vinculado ao Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Mas as transações não regulamentadas, feitas no chamado mercado voluntário de carbono, poderão continuar existindo, o que é motivo de preocupação para as organizações populares e sociais da Amazônia.
O Parecer dos Povos afirma que de 69 projetos do mercado voluntário disponíveis para avaliação, 11 possuem sobreposição total com áreas de uso coletivo; 22 possuem sobreposição com áreas públicas e 23 são desenvolvidos em áreas privadas. Os dados são de um levantamento feito pelo escritório de advocacia Hernandez Lerner e Miranda, com base na plataforma da certificadora Verra5, a principal em operação no Brasil.
“O acoplamento dos mercados voluntário e regulado nos deixa com um mercado de poluição onde circulam títulos podres de carbono, em razão do alto custo social dos créditos voluntários e da sua associação a fraudes investigadas nacional e internacionalmente. Assim, na lógica de facilitar o cumprimento das metas de poluição aplicadas às empresas, a proposta segue reiterando o ciclo vicioso de assédio, expulsões e deslocamentos forçados associados à instalação de projetos voluntários de carbono denunciados por tantas comunidades, além de reforçar uma abordagem conservacionista ultrapassada e sem lugar no Brasil”, diz o texto.
“Por isso, considerando que povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas já são vítimas de um conjunto de violações de direitos humanos e territoriais associados à instalação de projetos de carbono no mercado voluntário, as suas experiências deveriam ter sido trazidas à público e traduzidas em contribuições efetivas para a construção de salvaguardas socioambientais. Este, infelizmente, não foi o caso”, prossegue o documento.
Para o especialista em mercado de carbono da FGV, a regularização fundiária – e a consequente titulação de terras quilombolas, indígenas, de extrativistas e para reforma agrária, é a chave para a solução do problema. “Isso é importante para melhorar a vida das pessoas. Então você tem que investir em resolver os problemas mais essenciais, que é a regularização fundiária e envolvendo os atores que lá vivem”, afirmou Osório.
“Na floresta tem gente, e essa gente deve ser reconhecida na sua dignidade, além de ter os seus direitos, conquistados a duras penas, protegidos”, diz o Parecer dos Povos.