Em meio à polêmica da PEC da privatização das praias, a Justiça Federal do Rio Grande do Norte considerou nesta segunda-feira (10) inconstitucional a cobrança da taxa de ocupação de terrenos de marinha no litoral brasileiro. A decisão foi proferida pelo juiz federal Marco Bruno Miranda Clementino. A liminar não é definitiva, e a União pode recorrer.
Os terrenos de marinha estão localizados na faixa de 33 metros a partir da linha de maré alta, onde estão localizadas as praias e margens de lagos e rios. Os locais só podem ser ocupados com autorização da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), mediante pagamento de uma taxa anual.
A questão foi decidida em um processo que pede a anulação de uma dívida com o governo federal pela falta de pagamento da taxa pela ocupação de um imóvel.
Na decisão, o magistrado citou que há “insegurança jurídica” sobre a demarcação dos terrenos de marinha, cujos limites levam em conta informações da época imperial do Brasil.
“A caracterização do terreno de marinha tem como materialidade a dificílima definição da linha da preamar médio de 1831 para cada centímetro do litoral brasileiro, um dado técnico inexistente e rigorosamente impossível de ser recuperado, à míngua de registros históricos seguros”, afirmou.
O juiz também citou que a União “explora financeiramente” os terrenos.
“É necessária uma interpretação no mínimo hipócrita para afirmar pela possibilidade de resgate histórico dessa linha do preamar médio de 193 anos atrás, em cada átimo de um litoral gigantesco como o brasileiro, a partir de registros históricos escassos e imprecisos pela falta, à época, de equipamentos sofisticados que permitissem uma segura análise”, completou.
PEC da privatização das praias compromete manguezais e amplia a vulnerabilidade ecológica desses locais
A decisão foi assinada em meio à discussão sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, que transfere a propriedade dos terrenos do litoral brasileiro para estados, municípios e a iniciativa privada.
No domingo (9), a PEC foi alvo de protestos na orla do Rio de Janeiro.
De autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), a proposta tramita atualmente no Congresso Nacional como PEC 3/2022, já tendo recebido aval da Câmara dos Deputados. O texto prevê que sejam mantidas sob o domínio da União áreas relacionadas ao serviço público federal, unidades ambientais federais e áreas não ocupadas. Ao mesmo tempo, fixa que deverão passar para o domínio de estados e municípios “as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos”. Também prevê “domínio pleno” para “foreiros [indivíduo que tem direito de uso de um imóvel] e ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação da futura emenda constitucional decorrente da PEC”.
O texto da proposta diz ainda que os terrenos de marinha poderão passar para o domínio de “ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação da emenda constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé”. Os críticos da PEC apontam que a medida cria um ambiente jurídico favorável a uma maior ocupação da costa de forma prejudicial ao meio ambiente e aos direitos da população em benefício dos interesses do poder econômico.
No Senado, a PEC tem como relator Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. O parlamentar já apresentou parecer favorável à aprovação da medida. “Em sua origem histórica, a importância dos terrenos de Marinha esteve vinculada à ideia de defesa do território, principalmente ao objetivo da segurança da costa brasileira contra invasões estrangeiras. Todavia, atualmente, essas razões não estão mais presentes, notadamente diante dos avanços tecnológicos dos armamentos que mudaram os conceitos de defesa territorial”, defende no texto, ao afirmar ainda que a PEC “traz regramento adequado e equilibrado para os terrenos de Marinha”.
Ao rebater a defesa do senador, o deputado Túlio Gadelha (Rede-PE) disse que a proposta compromete manguezais e outras áreas da costa, além de ampliar a vulnerabilidade ecológica desses locais diante de acordos políticos a serem geridos pelos municípios e por representantes do poder econômico. “Todos nós sabemos que só a União tem a capacidade de cuidar. É a União que consegue fazer o controle, fiscalizar através de instituições como Ibama, ICMBio, a própria Marinha. Quando a gente tira dela essa competência de gestão desses espaços e atribui isso ao município ou à iniciativa privada, está deixando [essa responsabilidade] com o ponto mais frágil [do sistema federativo] ou então com pessoas que a gente não sabe se têm responsabilidade com aquele ecossistema.”
Representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), Ana Ilda Nogueira Pavão também manifestou preocupação com a medida durante o debate no Senado. Ela disse que o segmento vê a proposta como uma via para favorecer o “desmatamento desordenado provocado pelos grandes empreendimentos”. “Essa PEC vem nos trazer um retrocesso e ela não nos representa. Esse desenvolvimento [que estão buscando] não tem nada a ver com a gente. A gente sabe que o teor dessa PEC, no fundo, visa à urbanização da orla pelos grandes empreendimentos e quem vai lucrar com isso não somos nós. Nós só vamos perder.”
A pescadora citou ainda a preocupação com a expulsão de trabalhadores vulneráveis da costa por conta da atuação predatória do grande poder econômico. “Pescadores têm sido tirados dos seus territórios por conta da presença invasiva e, muitas vezes, irregular de grandes empreendimentos. Essa PEC vai fazer muito mal pra gente. Isso tem que ser falado. E, se é algo que vai nos atingir, a gente tinha que ser consultado”, defendeu.
O governo do presidente Lula já se manifestou contrariamente à chamada PEC das praias.
Da Agência Brasil e do Brasil de Fato