É quase tradição: durante os Jogos Olímpicos, os questionamentos sobre o desempenho brasileiro aparecem com força nas redes sociais. É comum que reclamações sobre a estrutura e salário dos esportes ganhem importância. A informação correta sobre como esse sistema funciona, no entanto, aparece muito pouco. Por isso, o Brasil de Fatobolsa at entrevistou especialistas em financiamento do esporte para explicar como funciona a transferência de recursos públicos para o esporte de alto rendimento.
O sistema público de financiamento do esporte olímpico e paralímpico existente hoje foi desenvolvido quase totalmente nos dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre 2003 e 2010. Os mecanismos que destinam a maior parte dos recursos são a Lei de Loterias, que manda dinheiro diretamente para os comitês olímpico e paralímpico brasileiros e também para as confederações de cada esporte; a Lei de Incentivo ao Esporte, um mecanismo semelhante à Lei Rouanet, que permite que empresas façam renúncia fiscal para apoiar projetos esportivos; e o Bolsa Atleta, remuneração mensal garantida a atletas que atingirem determinados resultados, começando no esporte juvenil.
Há ainda recursos orçamentários das pastas que cuidam do esporte na União, estados e municípios. Além disso, em 2008, um programa sui generis foi criado para apoiar a carreira dos atletas de alto rendimento, o Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) das Forças Armadas. Ele prevê que esportistas com chance de medalhas podem pleitear o ingresso no Exército, Marinha ou Aeronáutica para participar de competições militares. Para o atleta, isso garante soldo, aposentadoria e uso das instalações das Forças para treinos.
“Em retrospecto histórico, a gente percebe que ao longo do tempo o Brasil vem ampliando e melhorando a sua participação no esporte de alto rendimento”, afirma Fernando Henrique Carneiro, pesquisador do Grupo de Pesquisa e Formação Sociocrítica em Educação Física, Esporte e Lazer da Universidade de Brasília (Avante/UnB).
“Tanto que em Tóquio o país teve os seus melhores resultados, muito fruto do que foi sendo construído para o ciclo dos Jogos do Rio 2016. Ao longo do tempo, os governos Lula e Dilma foram estruturando as políticas públicas para o setor”, explica.
Esse sistema de financiamento representou um ponto de virada fundamental para o esporte olímpico brasileiro. Até 2000 – nos Jogos de Sydney – o Brasil havia participado de 17 Olimpíadas e conquistado 66 medalhas – 12 ouros, 19 pratas e 35 bronzes.
Já com os recursos garantidos, o cenário mudou drasticamente. Nas seis olimpíadas seguintes – de Atenas, em 2004, até Paris, neste ano – o país conquistou 102 medalhas: 28 ouros, 30 pratas e 44 bronzes. Em 2004, apenas os recursos das loterias estavam garantidos. A partir de 2008, todas as políticas já estavam em funcionamento.
Saiba como funcionam os principais meios de financiamento do esporte no Brasil
Lei de Loterias
Instrumento mais antigo de financiamento do esporte de alto rendimento no Brasil, o direcionamento de recursos da loteria irriga o orçamento o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) e de outras entidades menores.
Os repasses do tipo começaram em 1941, mas o atual modelo de destinação de recursos foi desenhado em 2001, com a Lei Agnelo/Piva. O texto previa que 2% da arrecadação bruta das loterias – descontados os prêmios pagos – fossem direcionados para o COB (85%) e o CPB (15%). Uma série de leis aprovadas desde então fez com que essa divisão fosse modificada, mas a maior parte dos valores segue destinada para essas duas entidades.
Por meio dos comitês, parte dos valores é distribuída para as confederações que compõem cada um deles. Assim, as loterias também beneficiam as entidades que gerem cada um dos esportes olímpicos.
Dados esquematizados pelo Avante/UnB mostram que, entre 2003 e 2023, as loterias repassaram para o esporte mais de R$ 8,1 bilhões em valores sem correção monetária. Só em 2023 foram R$ 883 milhões em recursos para as entidades beneficiadas.
Bolsa Atleta
Em 2004, outro pilar importante para o esporte de alto rendimento foi criado: o programa Bolsa Atleta surgiu para possibilitar que atletas que tenham bons resultados possam ter uma fonte de renda estável e manter a dedicação aos treinos e competições.
Desde o início dos pagamentos, em 2005, o programa desembolsou R$ 1,77 bilhão em bolsas para 37.595 atletas em todas as categorias.
No início, o programa não tinha foco específico no alto rendimento. Com a chegada dos grandes eventos esportivos no país, o Bolsa Atleta foi adaptado para apoiar mais os atletas que disputam o topo em suas modalidades.
“A legislação dizia que [o programa] era beneficiar os atletas e que a única condição é que eles continuassem ativos no esporte”, explica João Victor Moretti de Souza, coordenador técnico esportivo do Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva da Universidade Federal do Paraná (Ipie/UFPR). Para ganhar o benefício, era preciso apresentar resultados, mas o programa “não determinava se aquele atleta tinha que ganhar de novo”.
Com a política de atração de grandes eventos esportivos, que culminou com os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, o Bolsa Atleta ganhou novas regras para a manutenção da remuneração e uma faixa voltada para os atletas olímpicos de melhor resultado. Os valores mensais para esses esportistas variam, atualmente, de R$ 3.437 a R$ 16.629.
Em Paris, as quatro atletas que ganharam ouro para o Brasil eram beneficiadas pelo programa: Beatriz Souza, do judô, Rebeca Andrade, da ginástica artística, e Ana Patrícia e Duda, do vôlei de praia.
Para Hugo Hoyama, lenda do tênis de mesa brasileiro, o programa mudou a vida dos atletas. Ele foi beneficiado com a bolsa de 2005 a 2015, em diferentes categorias. Hoyama lembra que, no início da carreira, dependia do apoio financeiro da família. O pai era servidor público e tinha condições de apoiar o filho. “Conquistando bons resultados, eu consegui alguns patrocinadores. Isso fez com que eu me sustentasse dentro do esporte”, conta.
Quando começou a receber o Bolsa Atleta, Hoyama conta que o valor ajudou no pagamento de plano de saúde, algo que não era garantido antes. “O atleta pode se lesionar, ficar doente e, tendo um plano de saúde, isso vai ajudar para que ele possa recuperar”, exemplifica. Ele também usou a verba para viagens e treinamentos.
Para Moretti, o Bolsa Atleta tem um bom resultado para o que se propõe. “Ele atinge o atleta de uma forma muito direta, tira a participação de entidades”, diz. Ele afirma, no entanto, que há melhoramentos possíveis. “Seria possível investir mais nas categorias de base. Depois, nas categorias profissionais, já poderia deixar [a remuneração] mais com os comitês e os clubes”, diz. Isso ajudaria a fomentar a carreira de atletas iniciantes, que têm mais dificuldade de se manter do que aqueles que já garantiram bons resultados.
O pesquisador lembra, no entanto, que vários caminhos podem levar ao sucesso esportivo. “Alguns países oferecem treinadores e alojamento para os atletas, por exemplo. Não tem receita de bolo, e no Brasil, o Bolsa Atleta fez diferença”, afirma.
Lei de Incentivo ao Esporte e outras renúncias fiscais
O terceiro pilar do financiamento do esporte é o do investimento tributário, por meio de renúncias fiscais. A Lei de Incentivo ao Esporte, aprovada em 2006, instituiu um mecanismo semelhante ao da Lei Rouanet, em que instituições sem fins lucrativos podem pedir recursos do imposto de renda devido ao Estado por pessoas físicas e jurídicas.
No início, a lei deveria vigorar até 2015. Porém, sua validade foi prorrogada por duas vezes: primeiro até 2022 e depois, até 2029. Além disso, os percentuais de renúncia fiscal permitidos também foram aumentados. O texto original permitia que empresas doassem 1% do imposto de renda devido, enquanto pessoas físicas podiam doar 6%. Atualmente, os valores aumentaram para 2% e 7%, respectivamente.
A maior parte desses recursos, no entanto, vem sendo direcionada para o esporte de base, lazer e inclusão social. Em 2023, R$ 983 milhões em isenções de imposto de diversos tipos foram dedicados ao esporte, sendo R$ 273 milhões para o alto rendimento. A Lei de Incentivo, sozinha, foi responsável por R$ 652 milhões.
Edson Bindilatti, atleta do bobsled, modalidade das Olimpíadas de Inverno, lembra que essa lei é pouco conhecida no Brasil, o que diminui as chances de captação. “Não é uma doação para o atleta, é um patrocínio. As empresas podem divulgar isso como patrocínio”, afirma.
“Eu acho que se tivesse um sistema que as empresas entendessem que elas teriam esse benefício de divulgar a sua marca através de esportes, acredito que teria muito mais empresas querendo investir”, afirma Bindilatti, que também já competiu pelo atletismo.
A pesquisadora Suélen Castro, do Ipie/UFPR, afirma que a Lei de Incentivo ao Esporte pode parecer um mecanismo acessível, já que qualquer entidade pode inscrever seu projeto no Ministério dos Esportes para se habilitar a captar os recursos. No entanto, os projetos esportivos esbarram em duas dificuldades principais.
A primeira é técnica: é relativamente complicado cumprir todos os requisitos para que o projeto seja aprovado. E um deles é a comprovação da capacidade técnica operativa. “Um exemplo é que as entidades precisam ter um site em funcionamento. Mas muitas vezes eles possuem apenas redes sociais”, diz Suélen. A escrita dos projetos também pode ser difícil para quem não tem experiência em captação de recursos.
A segunda questão aparece na hora da captação. “Geralmente as entidades mais conhecidas, que já têm capacidade de articulação, recebem mais recursos”, afirma. Levantamento do Ipie mostra que o Pinheiros, tradicional clube de elite de São Paulo, é o campeão disparado na captação com base na Lei de Incentivo, com R$ 200 milhões entre 2007 e 2023. Em seguida aparecem duas organizações de esporte de base – Instituto Esporte Educação e Instituto Reação. Depois, vêm a Confederação Brasileira de Judô (R$ 76 mihões) e o Minas Tênis Clube (R$ 71 milhões).
A desigualdade também é regional: dos R$ 652 milhões captados em 2023, R$ 460 milhões ficaram no Sudeste. Para a pesquisadora, isso reproduz uma lógica de mercado. “É importante pensar em mecanismos para descentralizar esses recursos”, diz Suélen.
Outros recursos
Existem ainda outras fontes – menos volumosas – direcionadas para o esporte. Uma delas são os recursos orçamentários. São os valores destinados via Ministério do Esporte e secretarias estaduais e municipais dedicadas ao tema.
De acordo com o levantamento do Avante, esses recursos foram, em 2023, de R$ 355 milhões, cerca de 11% do total destinado ao esporte. Desse valor, R$ 114 milhões foram para o alto rendimento.
Suélen explica que os recursos orçamentários sempre foram instáveis. Por mais que a peça orçamentária previsse investimentos, como não há obrigatoriedade de gastos – como existe para saúde e educação – contigenciamentos eram comuns. Esse foi o motivo, aliás, para o desenvolvimento dos mecanismos que não passassem pelo ministério e pelas secretarias, o que foi considerado uma vitória pelo movimento dos esportistas.
Essa realidade, no entanto, tem outro lado. Não há direcionamento público dos investimentos. Quando vêm da Lei de Loterias, os comitês e confederações têm liberdade total para direcionar os gastos. Via Lei de Incentivo, as empresas decidem quem vão apoiar. Só o Bolsa Atleta tem regras definidas pelo poder público.
Esse movimento fortalece o uso privado de recursos públicos. De acordo com Fernando Henrique Carneiro, pesquisador do Avante, da UnB, o movimento de direcionar recursos para entidades privadas se intensificou depois do ciclo olímpico que terminou em 2016, com os Jogos do Rio, e depois com o governo de Jair Bolsonaro (PL). “O orçamento sai de cena e esses grupos passam a capitanear a política de alto rendimento”, explica.
E o futuro?
Suélen Castro, do Ipie, afirma que a luta pelos recursos é importante, mas que não são apenas mais recursos financeiros que vão melhorar a política esportiva nacional. “Aqui no instituto defendemos um sistema de informações de esporte, que possa mapear todos os investimentos, públicos e privados, na área em todo o país.”
Hoje, os investimentos são realizados de acordo com as decisões de cada ente, sem articulação.
Para tentar organizar esses investimentos, foi aprovada em 2023 a Lei Geral do Esporte. Ela prevê uma organização dos investimentos, à semelhança do que acontece na educação. Municípios, estados e União têm obrigações específicas, o que ajuda a direcionar esforços. Além disso, a lei prevê a criação do Fundo Nacional do Esporte, ainda não regulamentado.
“Ainda é difícil prever como esses mecanismos vão funcionar, pois a lei é muito nova e eles ainda não foram implementados”, diz Suélen. Mas o fundo é uma esperança de estabilizar uma nova fonte de recursos para o esporte, tanto o de base como o de alto rendimento.
Além disso, apesar de não ter havido propriamente uma diminuição de recursos para o esporte no governo Bolsonaro, os resultados das Olimpíadas de Paris já foram piores do que as de Tóquio. O Ministério do Esporte foi extinto e virou uma secretaria vinculada ao Ministério da Cidadania.
Alguns programas estatais voltados para o esporte de base foram cancelados – com destaque para o Segundo Tempo, que buscava inserir crianças em práticas esportivas diversas. Um dos maiores expoentes advindos desse programa é o canoísta Isaquias Queiroz, que levou a prata no C1 1000 metros em Paris e empatou com Torben Grael e Robert Scheidt como os maiores medalhistas olímpicos masculinos brasileiros, com cinco conquistas cada.
“Nesses seis anos, a gente não teve mais essa quantidade de programas sociais e de oportunidade para que as crianças brasileiras tivessem essa iniciação esportiva. Isso meio que traz uma ameaça para o futuro, porque a gente tem menos atletas sendo formados para serem desenvolvidos e virarem grandes campeões”, afirmou o ministro do Esporte do governo Dilma, Ricardo Leyser, em entrevista ao programa Central do Brasil, do Brasil de Fato.
Do Brasil de Fato