Uma das reações mais contundentes nas redes sociais à lista divulgada pelo governo com todas as empresas beneficiadas com benefícios fiscais foi de Ricardo Cappelli, hoje presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
“Pela primeira vez na história, o Ministério da Fazenda abriu os dados sobre os R$ 546 bilhões em benefícios fiscais”, escreveu ele. “Ficou fácil agora fazer os cortes. É só listar e decidir. Dá menos de 10%. Ajuste fiscal? Moleza”.
Para Cappelli, as informações divulgadas deixam claro que a pressão do mercado sobre o governo por cortes em benefícios sociais, enquanto grandes conglomerados recebem é a expressão do rentismo que luta para manter seus privilégios e lucros estratosféricos.
Nessa entrevista ao ICL Notícias, ele explica por quais motivos a decisão do Ministério da Fazenda de tornar pública a lista deve tornar mais racional o debate por equilíbrio fiscal.
ICL Notícias: Qual a avaliação você faz dessa lista de empresas que recebem benefícios fiscais, diante da pressão que o governo está sofrendo para cortar gastos?
Ricardo Cappelli: Eu achei que foi uma iniciativa muito boa liderada pelo ministro Fernando Haddad porque enfrenta um falso debate que tentam cristalizar na sociedade. Um debate dividindo os responsáveis fiscais e os gastadores irresponsáveis. Equilíbrio das contas públicas todo mundo defende. A questão é que na hora de fazer o equilíbrio tem setores da sociedade que só querem cortar dos mais pobres e ficam escondendo os benefícios das grandes corporações empresariais. Ficam escondendo do debate também os mais de R$ 800 bilhões que o país pagou nos últimos doze meses de juros e serviço da dívida.
Todo mundo é a favor de equilibrar as contas, mas vamos botar tudo na mesa. O que o Ministério da Fazenda fez foi colocar tudo na mesa. Um gasto tributário de R$ 546 bilhões de reais não é um gasto qualquer. É preciso colocar tudo na mesa e sociedade decidir de onde vai cortar, quem vai perder. Não é razoável restringir esse debate às políticas sociais, como vinha acontecendo. Parte do mercado financeiro vinha tentando encurralar o governo dizendo que o único caminho era cortar Benefício de Prestação Continuada que atende idosos e pessoas com deficiência. Queriam cortar da saúde, da educação, queriam desvincular aposentadoria do salário mínimo.
No final, é sempre um debate sobre o destino do orçamento público, quem fica com qual parte. E ao tentar restringir o debate às políticas sociais, as grandes corporações e o setor financeiro tentam se eximir da responsabilidade com a aplicação do orçamento público onde eles incidem fortemente. Se a gente somar R$ 546 bilhões com mais R$ 800 bilhões de serviço da dívida nós estamos falando de mais de R$ 1 trilhão que vai para setores como o mercado financeiro e grandes corporações. E aí você tem que tirar o dinheiro de aposentados? Sinceramente…
Eu achei muito boa a iniciativa do Ministério da Fazenda porque joga luz no debate.
Você tem alguma esperança de que a divulgação desses números faça recuar os grupos de pressão sobre o governo ?
Eles vão continuar pressionando mas os fatos e a pressão da comunicação através das redes sociais torna impossível esconder esses números divulgados pelo Ministério da Fazenda. Hoje mesmo eu vi um um jornal de grande circulação no país (Folha de S. Paulo) já criticando a questão dos benefícios fiscais. Dizendo inclusive que você tem um gasto tributário relacionado a benefícios e isenções que corresponde a 6,9% do PIB, que isso precisa ser revisto. Contra fatos não há argumentos. As coisas ficam diferentes na hora que você joga luz, na hora que você coloca CNPJ na praça dizendo: “olha essa empresa tem benefício de centenas de milhões de reais, então como é que quer cortar do da pessoa com deficiência?”.
O mercado joga o jogo dele, faz o papel dele e acho que o governo está começando a sair da defensiva nesse debate e fazer a discussão com equilíbrio. Volto a dizer, todos são a favor de equilibrar as contas públicas. A questão é quem paga a conta.
Algum setor dos que aparecem na lista divulgada pelo governo chamou sua atenção em especial?
A questão é que tem ali grandes grandes corporações, grandes setores. E o que chama atenção é que tem benefícios e isenções que eram para ser provisórios que se tornaram definitivos, por pressão dos grandes lobbies que atuam aqui em Brasília. Então, esses grandes lobbies se apoderam do orçamento público e depois querem empurrar a conta do equilíbrio para os mais pobres que não têm lobby aqui, que não têm estrutura de pressão em Brasília.
Mais do que um setor específico, me chama atenção, por exemplo, benefícios como a desoneração da folha, que era um negócio temporário que virou definitivo. É preciso enfrentar essa questão e, volto a dizer, eu acho que o movimento do Ministério da Fazenda foi muito importante.
Beneficiado pela desoneração da folha tem um setor que é ponta de lança nessa campanha pelo corte de gastos para os mais pobres: o setor de comunicação.
Você tem hoje setores que estão imbricados, viraram quase sócios. Quando você pega os gigantes do mercado financeiro, boa parte deles entrou no setor de comunicações, comprou veículos de comunicação, virou acionista de veículos comunicação. O mercado financeiro quer controlar o debate público, quer controlar as opiniões que circulam sociedade. Só que hoje isso é impossível porque com o advento das redes sociais você tem veículos, por exemplo, como ICL que não se alinha a essa tentativa de doutrinação da Faria Lima.
Então, é óbvio que os veículos de comunicação, como recebem dinheiro desses setores também, vão alinhando seus interesses com eles. No fundo é o velho debate do Brasil que une uma elite com absoluta falta de sensibilidade social para empurrar a conta mais uma vez para a maioria do povo.
O agronegócio costuma alardear que o Brasil depende dele, mas a julgar pela lista de benefícios fiscais é o agro que depende do Estado…
O agro tem muito apoio do Estado com o plano Safra e com outras políticas, o agro tem um papel hoje fundamental no superávit da balança comercial brasileira. Eu não acho que o problema do Brasil seja o apoio ao agro. Eu falo isso muito para a indústria.
O problema do Brasil não é o agro. O problema do Brasil é a Faria Lima, é o rentismo. Se a gente somar o orçamento da saúde e da educação do ano passado, ele é menos da metade do que a gente gastou com juros, com o serviço da dívida. Essa é a questão central. Em 2023, segundo dado oficial do Banco Central, os bancos no Brasil praticaram o terceiro maior spread médio (diferença entre a taxa que os bancos cobram para emprestar dinheiro e a taxa que pagam para captar recursos, ou seja, o lucro) do planeta, 31,46%. A gente só ficou atrás do Zimbabwe e Madagascar. Sendo que o spread médio praticado pelos bancos daqui dos países da América do Sul ficou entre 5% e 8%.
Que desequilíbrio é esse na economia brasileira que justifica você ter um spread médio de 31,46%? Isso aí é cinco, seis, sete vezes o que é praticado pelos países da América do Sul nós estamos atualmente com a terceira maior taxa de juros do planeta. Estamos atrás da Rússia, que é um país em guerra, e da Turquia.
E aí o argumento deles é que há um desequilíbrio estrutural na economia brasileira, porque há um crescimento da relação dívida-PIB. Quando você pega os países que estão abaixo do Brasil, com juros muito menores, você vai ver que a relação dívida-PIB deles é bem maior que a do Brasil, o Brasil está muito melhor que eles.
Então nada justifica isso. O que justifica isso é uma concentração sem precedente no planeta do mercado de capitais no Brasil, que faz com que eles atuem para manter os privilégios do rentismo parasitário. Ganhar dinheiro sem trabalhar, no Brasil, virou um ótimo negócio, com taxas de juros escorchantes.
Você acha que vai haver algum tipo de reação o mercado à divulgação dessa lista?
Eu não creio em reação. Primeiro porque a gente não está falando de fake news. São fatos. São dados verdadeiros, da Receita Federal. Então não há o que protestar. Há um fato e o governo só deu transparência, jogou luz nos números e nos fatos para que o debate público, para que a sociedade possa entender o que está acontecendo. Então não vejo nenhum tipo de reação e nem tenho receio de nenhuma reação vinda do mercado.
Sua área de atuação hoje é a indústria. Como o setor industrial aparece nessa lista de benefícios?
Veja, eu acho que a gente não pode condenar a priori e nem aprovar a priori a questão dos benefícios fiscais. É preciso ver caso a caso. O benefício fiscal é válido, na minha opinião, quando gera desenvolvimento, quando gera investimento em pesquisa, em inovação. Quando consegue adensar as cadeias produtivas da indústria, quando tem um sentido estratégico. Não acho que a gente deva condenar a priori e nem aprovar a priori.
Benefício fiscal só faz sentido quando agrega estrategicamente na estruturação de setores importantes da economia brasileira. Temos um programa que trata da depreciação acelerada, por exemplo. O parque industrial brasileiro tem máquinas com média 14 anos. Isso afeta muito a produtividade brasileira. O ministro e vice-presidente Alckmin, junto com o presidente Lula, lançaram a o programa contra depreciação acelerada que foi aprovado pelo Congresso Nacional. Isso está permitindo que as empresas renovem o seu parque de máquinas e equipamentos e abata isso do imposto devido em apenas dois anos. Isso tem um potencial imenso para renovar o parque fabril brasileiro e aumentar a produtividade da indústria. Então é o tipo do benefício que que lá na frente ele vai gerar mais arrecadação, porque vai aumentar a produtividade, vai gerar mais emprego. É um benefício que vale a pena.
Mas tem benefício que precisa ser melhor avaliado. Acho que precisa ter equilíbrio. O mais importante desse debate é jogar luz sobre o orçamento público. Porque não pode prevalecer uma lógica de que o governo é presidido pela gastança irresponsável. Isso é uma mentira que o mercado financeiro tentou espalhar nas últimas semanas e que está sendo revertida.
Nesse capítulo da distorção dos benefícios fiscais está a desoneração da folha, que deveria já ter terminado, foi prorrogado por causa da pandemia, e voltou a ser prorrogado novamente.
Isso foi mantido durante a pandemia para preservar empregos. A pandemia acabou. Por que isso precisa ser mantido? É o tipo de benefício fiscal que é insustentável porque não agrega nada, não tem sentido estratégico nenhum. Você pegou um benefício que era conjuntural e transformou em permanente. É uma das das coisas que precisa ser debatida no conjunto a discussão sobre o orçamento público.
Como se vê pela lista de benefícios fiscais, os R$ 50 bilhões que o governo tem que cortar para manter o equilíbrio das contas não precisam ser tirados dos mais pobres. É fácil de achar em outro lugar, não?
É fácil de achar. Seja nos benefícios fiscais, seja na conta do serviço da dívida. Outra coisa que chama atenção é o seguinte: eles querem debater o equilíbrio do do orçamento público só que começam a discussão excluindo todo o gasto com serviço da dívida. Como se aumentar a taxa de juros não tivesse impacto no orçamento público. É como se a cada meio por cento, um por cento que suba não tivesse impacto de bilhões e bilhões de reais no orçamento público. É preciso trazer isso pro debate também.
Que papel exerce o o presidente do Banco Central, Roberto Campos Netto, nessa trama toda, nessa campanha para pressionar o governo a cortar gastos somente de quem é mais pobre?
Ele está confuso nesse momento porque não sabe se ele é o palpiteiro geral da República ou se ele é o porta-voz da Faria Lima. Então, essa semana resolveu palpitar sobre direito trabalhista, sobre o fim da escala 6×1. No outro dia, num gesto audacioso, resolveu dizer para o governo que o mercado financeiro exige o ajuste e que tem pressa. Veja só.
Mas não é supresa, porque o sr. Roberto Campos Netto veio do Santander, veio do mercado financeiro e pra lá vai voltar. Ele representa esses interesses.
A única pressa que o Brasil tem é que ele saia logo da cadeira de presidente do Banco Central e volte a representar os interesses que eles sempre representou.