Os dados de milhões de beneficiários do Auxílio Brasil foram vazados para milhares de correspondentes bancários – como são chamados agentes terceirizados contratados por instituições financeiras para prestar e vender serviços a clientes –, que estão usando essas informações pessoais em uma estratégia agressiva de venda de crédito consignado.
De acordo com reportagem da jornalista Amanda Audi, do The Brazilian Report, portal de notícias sobre o Brasil para divulgação no exterior, a riqueza de detalhes nos dados do Auxílio Brasil fortalece a percepção de que eles tenham sido vazados pelo próprio governo federal. A possibilidade de empréstimos consignados com o programa Auxílio Brasil faz parte de medida eleitoreira, anunciada às vésperas do pleito pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), que libera o beneficiário a comprometer até 40% de sua renda mensal com os empréstimos.
A medida envolvendo o Auxílio Brasil faz parte do arsenal orçamentário que Bolsonaro vem lançando mão para evitar de ser o primeiro presidente da história do país a não se reeleger. A reportagem mostra, no entanto, que apenas um desses correspondentes bancários tinha os dados privados de 3,7 milhões de pessoas. O que representa 20% de todos os beneficiários do Auxílio Brasil em 21 dos 27 estados brasileiros. A estimativa é que pelo menos 50 mil correspondentes tenham tido acesso a bases de dados semelhantes.
Vazamento de dados do Auxílio Brasil: ‘Nunca vi nada parecido’
As informações incluem o endereço completo das pessoas, números de telefone (fixo e celular), data de nascimento e quanto elas recebem em benefícios por mês. Também foram vazados os registros no Número de Identificação Social (NIS) da Caixa Econômica Federal e do Sistema Único de Saúde (SUS). Para conferir se as informações eram verdadeiras, o The Brazilian Report entrou em contato com algumas pessoas da lista. Todos os beneficiários procurados confirmaram que os dados estavam corretos.
“Trabalho com isso há 20 anos e nunca vi nada parecido”, relatou um correspondente bancário que falou à reportagem sob condição de anonimato. “Geralmente temos acesso a dados de pessoas que se pré-cadastram para crédito, mas elas nunca precisam informar o NIS ou o endereço. Claramente, houve um vazamento de dados oficiais”, apontou.
O Ministério da Cidadania e a Caixa, que administram o programa, e o DataPrev, que gerencia o banco de dados sociais do país negaram qualquer violação de dados ou vazamento malicioso. A porta-voz do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Ione Amorim observa que o compartilhamento de dados é “alarmante”. De acordo com ela, o caso “deve ser investigado imediatamente pelas autoridades”.
Crime eleitoral
“Se os dados de quase 4 milhões de brasileiros estão com um único correspondente bancário, é legítimo imaginar que as informações estão circulando sem qualquer proteção e podem resultar em fraudes, golpes e inclusive uso eleitoral”. “É muito poderoso você conseguir o contato de milhões de pessoas que precisam desesperadamente de dinheiro”, adverte a especialista.
Na semana passada, o cientista político Alberto Carlos Almeida já havia denunciado em sua conta no Twitter ter tido conhecimento de que beneficiários de programas sociais estão recebendo mensagens informando que Lula iria cortar o valor do Auxilio Brasil se eleito. “Se isso ocorreu com uso de dados do governo, é um crime eleitoral”, disse Almeida.
A reportagem acrescenta que a percepção de vazamento de dados do governo é fortalecida também pelo fato de que os arquivos contendo dados pessoais de beneficiários foram compartilhados antes que o programa de crédito consignado fosse anunciado. Segundo uma fonte, a medida entrou em vigor em 11 de outubro. Mas os dados aos quais o Brazilian Report teve acesso são datados de 5 de julho. Desde então, os correspondentes bancários estão contatando beneficiários por telefone ou WhastApp para oferecer empréstimos. O vazamento revela ainda uma violação da Lei Geral de Proteção de Dados. A legislação deixa claro que as empresas não podem armazenar ou usar dados de cidadãos sem o seu consentimento explícito.
TCU cobra explicações
“As pessoas estão em situação de tanta necessidade que elas não entendem que estão sendo abusadas”, destaca Ione Amorim.
Embora a concessão do empréstimo traga um alívio momentâneo, a avaliação de especialistas é que ele representa um risco grande para essa população já fragilizada financeiramente. O Idec destaca, por exemplo, que a taxa de juros é bem mais alta do que a praticada atualmente para o empréstimo consignado de outras categorias, como aposentados e servidores públicos.
Nesta segunda (24), o ministro Augusto Cedraz do Tribunal de Contas da União (TCU) pediu à Caixa que se pronuncie, em 24 horas, sobre possíveis irregularidades na concessão de empréstimos consignados aos beneficiários do Auxílio Brasil. Na decisão, o TCU ainda sugeriu que, por prudência, o banco cessasse a liberação de novos valores. Em 10 dias, apenas o aplicativo da Caixa de empréstimos teve mais de 206 milhões de acessos.