Em um de seus últimos atos, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Câmara dos Deputados tentou constranger o movimento ao convidar a depor seu coordenador nacional, João Pedro Stedile.
A tentativa, no entanto, foi desmantelada por uma exposição assertiva do coordenador e pela apresentação de uma série de dados controversos, tanto por parte do relator, o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), como do deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP).
Entre os dados, estava um levantamento que apontava que assentamentos de terra na Amazônia eram os principais causadores do desmatamento na região. Um estudo do Imazon aponta, por exemplo, que os assentamentos da região respondem por 15% do desmatamento total da Amazônia. Há, no entanto, uma variável importante, apontada por Alexandre Saraiva, delegado da Polícia Federal, que foi superintendente da PF na Amazônia até 2021, quando foi exonerado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), e que acompanhava, in loco, o depoimento da CPI.
“Nunca, nos meus 10 anos na Amazônia, me deparei com alertas de desmatamentos graves em áreas de assentamento. Eu acho que isso aí é um dado pessoal. Eu tenho dados técnicos mostrando que aquilo que o Kim disse não é verdade. Os assentamentos respondem por 8% das terras tituladas na Amazônia, sendo que desses 8%, uma grande parte não foi destinada a trabalhadores rurais, foi fraude”, explica Saraiva.
“É urgente que se faça uma auditoria naqueles títulos que foram emitidos, porque tem muita gente do agronegócio que se beneficiou da lei 11.952, do governo do PT, que foi para beneficiar o pequeno trabalhador rural”, completa o delegado, que é o convidado desta semana no BdF Entrevista.
Saraiva aponta que “o primeiro indício de fraude nesses títulos que foram emitidos, desses falsos assentamentos, é que todos os títulos saíam – isso ninguém me contou, eu vi – assim: o limite era 1,5 mil hectares, aí vinha 1.499, 1.498, 1.497”. Durante a gestão de Michel Temer, houve um reajuste para o tamanho da área passível de regularização mas, segundo Saraiva, o esquema se repetia.
“No governo Temer subiu para 2,5 mil e aí chegavam 2.499. 2.498. Vinha o primeiro título com o nome do pai, o segundo com o nome do filho, com o nome do outro filho, o nome da esposa, aí juntava tudo e no final tinha um lote de 10 mil, 15 mil hectares. Então, essas áreas que são supostamente de assentamentos onde ocorreu o desmatamento, não eram daquele trabalhador rural”, explica o delegado.
Outra denúncia apontada por Saraiva, e que exemplifica sua hipótese, acabou ganhando o noticiário a partir da sua exoneração da superintendência da PF na Amazônia. No evento, o delegado denunciou a participação do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com a grilagem de terras e o tráfico ilegal de madeira.
Segundo Alexandre Saraiva, durante uma operação da PF que interceptou uma carga de madeira ilegal no Pará, em 2021, seu trabalho foi questionado pelo Ministério Público Federal, pela Corregedoria da PF e, por fim, pelo próprio ministro Ricardo Salles. Os documentos apresentados por Salles para interromper a ação, segundo Saraiva, dão conta de terras griladas.
“Havia ali uma extração ilegal de madeira, e essa madeira saindo de determinado local, eles precisavam de um título de terra para justificar aquela extração, para documentar a madeira, então eles esquentavam algumas terras. E como eles fizeram isso? Usando um assentamento. O Ricardo Salles entregou esses documentos e eles são públicos, eu apresentei na Câmara dos Deputados, inclusive”, diz Saraiva.
O tráfico ilegal de madeira, segundo dados de agências estrangeiras de investigação policial, que inclusive deram aparatos probatórios ao governo brasileiro, ligando Salles à investigação, apontam que o tráfico ilegal de madeira movimenta mais de US$ 150 bilhões todos os anos.
“Para o ministro sair de Brasília, ir até o interior do Pará duas vezes, eu não vejo outra possibilidade que não seja a de que ele estivesse integrando uma organização criminosa, porque a destruição da Amazônia é perpetrada por uma organização criminosa, que tem tentáculos em vários escalões do governo e chegou, na época do Ricardo Salles, no mais alto escalão do governo federal.”
No dia seguinte à sua denúncia, Saraiva ficou sabendo de sua exoneração pela imprensa. Este foi o caminho de outros tantos chefes da Polícia Federal que entraram em conflito com o governo de Jair Bolsonaro.
“Acho que o governo Bolsonaro deixou um legado terrível e um precedente: ele mostrou que é possível aparelhar a Polícia Federal. Acho que a gente precisa se precaver (…), precisamos de uma legislação que nos dê garantias para trabalhar, que você não vai ser perseguido porque estava realizando o seu trabalho”, completa o delegado.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Durante a CPI do MST, seu livro voltou à pauta, depois que o coordenador nacional do Movimento Sem Terra, João Pedro Stedile, empunhou o seu livro indicando que o deputado Ricardo Salles, relator da CPI, fizesse uma leitura do seu livro Selva, que narra os bastidores da investigação sobre grilagem e o tráfico de madeira na Amazônia e faz um apanhado geral sobre o teu período ali à frente da superintendência no Amazonas. Como você viu o fim dessa Comissão, que não tinha um fato específico de investigação, mas soava mais como uma perseguição ao movimento e, talvez, uma tentativa de encurralar o governo federal.
Alexandre Saraiva: É, aquela CPI foi instaurada com um absoluto desvio de finalidade. Mas sobre o livro, sobre o João Pedro Stedile ter mostrado meu livro, eu me senti surpreso e extremamente honrado. Fiquei mais surpreso ainda com a reação do Ricardo Salles e do Kim [Kataguiri], porque ninguém falou nada, ninguém questionou. Foi como se tivesse exorcizado mesmo, mostrou aquilo e eles poderiam ter criticado e não falaram nada.
Esse gesto deles travarem foi acompanhado de uma exposição muito bem colocada pelo João Pedro Stedile, uma verdadeira aula de quem conhece a Amazônia, de quem conhece a realidade da Amazônia, de quem conhece a realidade do povo da Amazônia, do trabalhador que está lá. Eu sempre fui muito técnico, todo o tempo que eu trabalhei na Polícia Federal. Eu tenho minhas convicções pessoais, mas quando eu piso dentro da delegacia, eu sou um cara realmente apolítico.
Mas nunca, nos meus 10 anos na Amazônia, me deparei com alertas de desmatamentos graves em áreas de assentamento. Eu acho que isso aí é um dado pessoal. Eu tenho dados técnicos mostrando que aquilo que o Kim disse não é verdade. Os assentamentos respondem por 8% das terras tituladas na Amazônia, sendo que desses 8%, uma grande parte não foi destinada a trabalhadores rurais, foi fraude.
É urgente que se faça uma auditoria naqueles títulos que foram emitidos, porque tem muita gente do agronegócio que se beneficiou da lei 11.952, do governo do PT, que foi para beneficiar o pequeno trabalhador rural, que estavam em áreas de até 1,5 mil hectares efetivamente exploradas e diretamente exploradas. Mas se o trabalhador explora 100 hectares, ele vai receber do estado 100 hectares, se ele explora 500, 500 hectares.
O primeiro indício de fraude nesses títulos que foram emitidos, desses falsos assentamentos, é que todos os títulos saiam – isso ninguém me contou, eu vi – assim: o limite era 1,5 mil hectares, aí vinha 1.499, 1.498, 1.497 [no documento]. Depois do governo Temer subiu para 2,5 mil e aí chegavam 2.499. 2.498. Vinha o primeiro título com o nome do pai, o segundo com o nome do filho, com o nome do outro filho, o nome da esposa, aí juntava tudo e no final tinha um lote de 10 mil, 15 mil hectares.
Então, essas áreas que são supostamente de assentamentos onde ocorreu o desmatamento, não eram daquele trabalhador rural. Essas pessoas, para conseguirem um título, é a coisa mais difícil do mundo. Nós pegamos títulos emitidos pelo governo do estado e pelo Incra em nome de médicos, de modelos…
Comentando também sobre a CPI, você falou como o então ministro do Meio Ambiente, na época do governo Bolsonaro, Ricardo Salles, supostamente teria atuado na grilagem de terras no Amazonas. Qual foi a atuação do então ministro Ricardo Salles?
Olha isso é interessantíssimo, porque havia ali uma extração ilegal de madeira, e essa madeira saindo de determinado local, eles precisavam de um título de terra para justificar aquela extração, para documentar a madeira, então eles esquentavam algumas terras. E como eles fizeram isso? Usando um assentamento.
O Ricardo Salles entregou esses documentos e eles são públicos, é um documento público que eu apresentei na Câmara dos Deputados, inclusive. Olha como eles são, eles fizeram uma CPI para investigar assentamentos, quando na verdade, o relator da CPI utilizou documentos de um assentamento feito em 1986, chamado assentamento Traírão – que não chegou a se concretizar – mas algumas pessoas pagaram, se inscreveram…
Então, por exemplo, essas pessoas que estavam explorando lá na área do Rio Arapiuns, pegaram esse título de terras de 1986, do projeto Traírão, e levaram para o outro lado do estado, com a suposta alegação de permuta. O Seu Nelson, que não conseguiu ser assentado na época por problemas burocráticos com o Incra, então vamos dar para ele uma outra área aqui no estado do Pará. Parece razoável, né?
Só que a terra não é dada para o Nelson, é dada para Joana [nome fictício]. É como se eu permutasse o seu carro com o João, ou algum amigo meu, sem a sua assinatura. Isso é uma aberração jurídica. Isso está lá nos documentos que eles me mandaram, nos processos administrativos. Só que quando sai no Diário Oficial, você jura, ou qualquer um que lesse o Diário Oficial, que quem estava lá em 1986 era a Joana, que mora em Santa Catarina, é empresária. Eu estou falando uma, mas são dezenas. Então, o Ricardo Salles estava diretamente envolvido.
Primeiro, foi o ministro do Meio Ambiente, a presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, Carla Zambelli (PL-SP) e o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) foram lá, no meio de um trabalho da Polícia Federal, com laudos periciais já prontos, com vasta materialidade. Você já imaginou se todo o trabalho policial começa a receber visitas de parlamentares para questionar apreensões, por exemplo, do tráfico de drogas ou de contrabando? O que eles foram fazer lá?
O nosso trabalho já era fiscalizado pela nossa corregedoria, pelo Ministério Público Federal, estava sob a jurisdição da Justiça Federal, mas como eles perderam em todas essas instâncias – e tentaram muitas vezes, eu respondi a vários questionamentos da corregedoria, do Ministério Público, tentaram mandado de segurança na Justiça e perderam tudo – eles partiram para um outro canal, que foi tentar politicamente influenciar numa investigação legítima que a polícia vinha desenvolvendo.
E para mim foi uma surpresa, porque se saísse em um filme, a gente ia dizer: “não, isso aí também já é demais”, que roteirista é esse, que vai sair de Brasília para defender… tudo bem que o cara seja corrupto e faça isso nos bastidores, mas pessoalmente, e achar que não vai acontecer nada…
Eu te digo isso porque eu tive uma outra experiência em 2006, quando eu fiz uma operação – e era o governo do PT – nós atingimos o Ibama do Rio e, de certa forma, você atinge o governo. Foi uma operação muito grande e a ministra era a Marina Silva. Você sabe o que ela fez? Ela saiu de Brasília, foi ao Rio de Janeiro para apoiar o trabalho da polícia, se posicionou firmemente do lado da lei e disse: “o que vocês precisarem para que a gente faça uma investigação completa, vocês podem contar com o ministério”.
Lembrando que essa operação atingiu o Ibama, mas ela também começou por iniciativa de servidores honestos do Ibama, que são sua vasta maioria. O Ibama é o órgão mais importante de proteção do meio ambiente no Brasil e foi completamente desmembrado no governo Bolsonaro, e que hoje voltou, graças a Deus, a trabalhar e nós já temos bons resultados em Roraima, de modo geral, na Amazônia, o Ibama está fazendo um excelente trabalho.
Quais eram os interesses do deputado Ricardo Salles com o tráfico ilegal de madeira?
Olha, a Interpol, há dois anos, lançou um relatório segundo o qual a madeira ilegal movimenta por ano US$ 153 bilhões. Estamos falando de madeira de florestas tropicais, que são madeiras de alta qualidade. Tudo bem, não tem floresta tropical só no Brasil, mas vamos colocar que metade está aqui.
Então, para o ministro sair de Brasília, ir até o interior do Pará duas vezes, eu não vejo outra possibilidade que não seja a de que ele estivesse integrando uma organização criminosa, porque a destruição da Amazônia é perpetrada por uma organização criminosa, que tem tentáculos em vários escalões do governo e chegou, na época do Ricardo Salles, no mais alto escalão do governo federal.
Como nós estamos vendo, tanto na questão do garimpo, que tinha um beneplácito completo dos governos estaduais e do governo federal, quanto em outras situações… a notícia crime que eu mandei para o Supremo Tribunal Federal na época, foi que ele fazia parte de uma organização criminosa. Porque os grandes fornecedores de madeira para o mercado internacional eram os países do sudeste asiático, nos últimos 50 anos.
Mas a produção deles entrou em colapso por uma exploração excessiva. Isso tem artigos científicos e um especialmente esclarecedor de um pesquisador japonês chamado Minoru Kawasaki, que mostra como a exploração da madeira do sudeste asiático alimentou as indústrias do Japão, as indústrias de países industrializados. A fraude, a invasão de terras públicas, as oligarquias tomando conta, se você tirar sudeste asiático e colocar Amazônia, parece que você está falando daqui.
Mas como o sudeste asiático deixou de fornecer madeira, a madeira da Amazônia começou a ser interessante e subiu muito de preço no mercado internacional. Então, se exporta muita madeira para a União Europeia, para os Estados Unidos. E pior é que se importa por um preço vil, pode procurar nos sites, eu olho de vez em quando. O Ypê, aquelas árvores na Amazônia, elas têm de 200 a 1,4 mil anos de idade, são dados científicos. Então, não é um recurso renovável assim.
A madeira de uma árvore dessas é vendida nos Estados Unidos a preço de pinus, de compensado, não faz sentido. Isso só se explica porque 99% da madeira que sai da Amazônia é ilegal e é ilegal porque ela é retirada de terras públicas, o sujeito não paga pela matéria-prima, o segundo principal insumo da indústria madeireira é energia elétrica, e eles não pagam, é furto de energia generalizada, tem ofício da Amazonas Energia nesse sentido. Tem mão de obra análoga à escravidão e, no meio de tudo isso, eles têm muito recurso e tem nas mãos as autoridades estaduais e autoridades federais. Óbvio que tem exceções.
E doações de campanhas desses criminosos que, em grande parte, não são da região Norte, eles são, muitas vezes, de estados do Sul e do Sudeste, que vão para lá para espoliar a região, tanto que as áreas mais desmatadas são as de pior IDH. O índice de homicídio no Brasil caiu em quase todo o país, menos na Amazônia, por quê? Porque essa guerra por terra, essa guerra por madeira, essas organizações criminosas – porque ali se mistura tráfico de drogas, de madeira, da mineração ilegal – e no meio disso tudo estava o ministro Ricardo Salles, estava a Carla Zambelli. Eles foram lá.
A tua saída da Superintendência da Polícia Federal se deu, também, neste mesmo período em que você apresentou provas contra o então ministro do Meio Ambiente. Foi também nesse mesmo período do governo Bolsonaro que houve diversas intervenções na Polícia Federal. Antes do teu afastamento, houve algum tipo de coação?
Eu fui [afastado] no dia seguinte. Apresentei a notícia crime e no dia seguinte fiquei sabendo pela imprensa que tinha sido exonerado. E eu fui o primeiro de uma longa fila de policiais afastados, simplesmente porque estavam fazendo o trabalho deles, especialmente na área de meio ambiente. Posso dizer que praticamente todos que estavam em funções de chefia foram afastados.
E isso, para mim, foi outro baque, porque eu entrei na Polícia Federal em 2003, e até esse governo passado, eu nunca – olha, eu fiz muitas operações, eu trabalhei muito, atuando contra os mais variados crimes – recebi uma ligação de um superior hierárquico ou de um parlamentar, ou de ministros, sofrendo qualquer tipo de pressão para fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, muito pelo contrário.
O que a gente tinha era incentivo para investigar e ir atrás. Então, eu acho que o governo Bolsonaro deixou um legado terrível e deixou um precedente, que ele mostrou que é possível aparelhar a Polícia Federal. Acho que a gente precisa se precaver, precisamos de uma legislação.
De modo geral, os servidores públicos costumam se preocupar com o salário. Eu acho que é importante se preocupar com salário, lógico, mas nós precisamos também de garantias para trabalhar. Garantias que você não vai ser perseguido porque estava realizando o seu trabalho. E mais do que isso, acho que nós temos muito que aprender, a instituição policial e a sociedade, com tudo que aconteceu com a Polícia Rodoviária Federal.
Está na hora de a gente desmilitarizar as polícias, de a gente democratizar as polícias, de termos um policial cidadão, um policial que tenha respeito absoluto pela vida, porque é preciso que se coloque – isso para mim sempre foi óbvio – neste momento, depois desse governo todo, que o maior bem, o mais importante que a polícia deve proteger sobre todos os outros, é a vida humana.
No ano passado, o senhor foi punido pela Polícia Federal por dar uma entrevista. Como é sua relação com a corporação hoje?
Olha, a minha relação hoje é muito boa. Não tenho o que reclamar. Infelizmente, ainda tem ideias bolsonaristas dentro da Polícia e tem a Corregedoria que está lá, enfim. Mas tudo bem, foram três dias de suspensão, eu acho que isso é motivo de orgulho para mim. Eu vou colocar essa punição num quadro, na minha parede, porque foi para dar uma entrevista em defesa da Amazônia.
Eu sabia das consequências, eu não sou criança, eu sabia que a postura que eu tomei. Eu fui a única voz dentro da Polícia Federal que se levantou efetivamente contra aquele governo, ninguém mais fez isso. Eu não gosto de autoelogio, mas essa punição realmente me deixou chateado, eu tenho uma ficha que, antes disso, era só de elogios. Isso aqui foi uma tristeza mas, de certa forma, também uma honra, de receber uma punição por fazer o certo.
Voltando à Amazônia, qual o tamanho do embate com o crime organizado? Nós vimos recentemente a imensa dificuldade que o governo federal, que tinha acabado de assumir a gestão, teve para repelir os garimpeiros ilegais na Terra Yanomami, em Roraima, por exemplo.
Só se chegou a esse ponto porque ficou quatro anos largado. Não só largado, mas incentivado, na verdade. Para você ter uma ideia, o governador de Roraima editou uma lei estadual proibindo a destruição do maquinário de garimpeiros, uma lei absolutamente inconstitucional. Depois o Supremo declarou a inconstitucionalidade dessa lei.
Então, o que o governo atual encontrou foi uma situação de completo descalabro e, infelizmente, ainda não terminou. Assim, zerou praticamente a presença de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, em Roraima e as imagens de satélite mostram isso muito claramente, só que as perícias que foram feitas nas águas do rio mostraram uma quantidade de mercúrio 8,6 mil vezes maior, em praticamente todos os rios.
E no início de junho, a Fiocruz soltou um estudo dizendo que 20% dos peixes vendidos nas principais capitais da Amazônia estavam contaminados com mercúrio. Isso gera enormes problemas neurológicos, principalmente em crianças. Não existe tecnologia no mundo para retirar o mercúrio da água. Então, o que aconteceu ali, ainda não se tem essa noção, mas talvez tenha sido uma das maiores catástrofes ambientais do Brasil, e talvez do mundo.
O que acontece na Amazônia é que essas organizações criminosas estão cada vez mais ganhando espaço. E eu comparo com a situação do Rio de Janeiro, que eu sou carioca e acompanho desde criança como as coisas foram piorando, áreas que o estado deixou de comandar e a coisa foi tomando uma dimensão. E eu temo que isso já esteja ocorrendo na Amazônia, só que aí, nós teremos um Rio de Janeiro de tamanho continental.
Então, se nós não tomarmos providências urgentes hoje, daqui a 20 anos nós vamos ter um problema seríssimo. As Forças Armadas têm uma doutrina de ficar esperando o eterno inimigo externo que nunca vem, enquanto nós temos um inimigo interno poderosíssimo e nós precisamos que essa doutrina mude. Já existem oficiais, e até um artigo de um coronel chamado Alessandro Visacro, chamado Fazendo a Coisa Certa, que defende a atuação das Forças Armadas contra o crime, claro, cada um dentro da sua atribuição constitucional.
Mas dentro da região amazônica, o país não pode abrir mão da capacidade logística das Forças Armadas no combate a esses grupos criminosos. É preciso muita atenção à região amazônica, porque se fala tanto em invasão internacional da Amazônia, e se esquece que esses grupos criminosos, inclusive que agora assassinaram o candidato à presidência no Equador, esses grupos atuam na Amazônia brasileira também.