O governo de Jair Bolsonaro (PL) enviou nesta semana para a Organização das Nações Unidas (ONU) sua versão sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, omitindo o aumento da fome no país e ignorando violações sistemáticas às pessoas negras. O informe também não menciona o número de mortes pela covid-19, um dos mais altos do mundo, nem o desmatamento. Ele tampouco cita a falta de políticas para a população indígena e o encerramento de espaços de diálogo com a sociedade civil.
O documento foi entregue pelo Estado brasileiro como parte do procedimento da sabatina que a gestão de Bolsonaro será submetida em novembro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Num exercício para avaliar a situação dos direitos humanos em cada país e se eles estão cumprindo suas obrigações internacionais, todos os governos são subordinados à Revisão Periódico Universal (RPU) nas Nações Unidas.
Mas, de acordo com observadores, o informe apresentado pelo governo brasileiro “foi transformado em um ato de campanha eleitoral, com uma lista de programas e medidas adotadas, sem citar a realidade dos problemas que o país enfrenta”, conforme reportou o Coletivo RPU ao jornalista Jamil Chade, correspondente internacional do portal UOL. Principal coalizão nacional, composta por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira, o coletivo destaca que o documento “está muito longe de espelhar a triste realidade atual, os desmontes e os retrocessos dos direitos humanos havidos no país nos últimos anos”.
Negacionismo no Governo Bolsonaro
A coalizão também acusa o governo Bolsonaro de “repetir o negacionismo, o retardo e a desproteção da população, os ataques e o desmonte das políticas de direitos humanos”. A gestão Bolsonaro omitiu, por exemplo, qualquer tipo de avaliação sobre a dimensão da pobreza nos últimos anos. O informe mostra apenas dados de quantas pessoas foram beneficiadas pelos programas do governo em meio à pandemia de covid-19. Por outro lado, o documento esconde as mais de 683 mil vidas perdidas em decorrência do coronavírus.
Em artigo publicado nesta quarta-feira (31) no jornal Folha de S.Paulo, Gabriel Sampaio e Camila Asano, da ONG Conectas Direitos Humanos, destacaram que, embora o governo tenha recebido mais de 50 recomendações relacionadas ao tema da segurança pública no último período, o Estado brasileiro “optou por não dar prioridade a esse tema em seu relatório. Isso reflete a falta de compromisso no combate à letalidade policial e ao encarceramento em massa que atingem majoritariamente a população negra, pobre e periférica do país”, advertiram.
A situação dos povos indígenas também foi ignorada no informe. De acordo com Jamil, há quatro anos o país recebeu 35 recomendações que direta ou indiretamente versavam sobre preocupações com a situação dos povos indígenas e do meio ambiente. À ONU, a gestão Bolsonaro informa apenas que promoveu um curso online sobre a “pauta indígena”, distribuiu mais de 400 mil cestas de alimentos para famílias indígenas e quilombolas, e que priorizou essas populações na campanha tardia de vacinação contra a covid.
‘Chega de mentiras’
“O desprezo com que o governo Bolsonaro tem tratado os povos indígenas e buscado abrir seus territórios à exploração predatória de recursos naturais fica, assim, escancarado nessas breves menções que apontam para a desestruturação da política indigenista e ambiental do país nos últimos anos, na contramão dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro”, garantem as entidades.
O relatório, entregue na segunda (29), foi alvo de protestos já no dia seguinte, quando as organizações participaram de encontro na ONU para examinar a situação dos direitos humanos no Brasil e preparar a RPU. Ainda segundo o correspondente internacional, o encontro acabou se transformando em um espelho da crise profunda pela qual passa o país com o atual governo.
Na ocasião, a representante Guarani Kaiowá, Erileide Domingues, destacou que os povos indígenas estão sendo “massacrados e alvo de muita violência por falta de território” há décadas. Uma crise que piorou, em suas palavras, com o presidente da República, Jair Bolsonaro. “Disputamos o que é nosso com o agronegócio. Colocamos nossas vidas em risco. (…) A crise piorou e se naturalizou. Já chega de mentira”, contestou.
Outras denúncias
A jornalista Anielle Franco, do Instituto Marielle Franco, irmã da vereadora assassinada em março de 2018, exigiu da ONU que monitore a situação do país. Em seu discurso, ela comentou a violência que assola defensores de direitos humanos no Brasil e se emocionou ao lembrar que a morte de sua irmã completou quatro anos sem respostas. A representante do Instituto Desenvolvimento e Direitos Humanos, Fernanda Lapa, completou, destacando que 80% das recomendações que o Brasil recebeu em 2017 na ONU para reavaliar sua situação de direitos humanos foram ignoradas pelo governo Bolsonaro.
As críticas não foram comentadas pelo embaixador do Brasil na ONU, Tovar Nunes. Segundo Jamil Chade, o diplomata optou apenas por informar que um documento com todos os programas do governo foi submetido às Nações Unidas. Nunes também alegou que o documento foi preparado a partir de consultas amplas e de forma transparente.