Sob crítica dos atingidos, governo federal assina repactuação da reparação da bacia do Rio Doce no caso Mariana

Após nove anos do rompimento da barragem do Fundão, novo acordo prevê o pagamento de R$ 170 bilhões.
25 de outubro de 2024

O governo federal assinou, nesta sexta-feira (25), o acordo de repactuação da reparação da bacia do Rio do Doce, devido ao rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana (MG), ocorrido em novembro de 2015. O empreendimento era de responsabilidade da mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Billiton, e à época, foi firmado um acordo em que, segundo os atingidos, empoderou as empresas em detrimento da população afetada pelo crime.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu que, embora seja o maior acordo de reparação já realizado na história, ele está aquém das expectativas dos atingidos.

“Eu fui, durante muito tempo, dirigente legal e parte da minha vida foi definida por conclusões de acordos e mesmo muitas vezes o acordo que eu assinava. Eu que eu levava para minha categoria provar, eu mesmo não estava 100% de acordo. O que me fazia fazer um acordo, era a certeza da importância do momento político e era a certeza de que aquele acordo era melhor do que entrar numa guerra”, declarou o presidente, que ainda criticou o processo de reparação em curso, conduzido pela Fundação Renova, que representa as mineradoras.

“A gente ainda não sabe o que foi feito com o gasto da fundação criada para cuida disso, esse é o dado concreto. Nem o Ministério Público sabe, nem a Defensoria sabe, nem o governo do estado sabe, nem o governo federal sabe. Tinham 37 bilhões e foram gastos, mas que a gente não sabe te destino”, afirmou Lula. “Eu espero que as empresas mineradoras tenham aprendido uma lição: ficaria muito mais barato ter evitado o que aconteceu”, finalizou.

Em coletiva de imprensa, o Advogado Geral da União (AGU), Jorge Messias, disse que a fiscalização dos recursos aplicados é de competência do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), mas reconheceu a falta de transparência da fundação no processo de reparação. Segundo o AGU, a repactuação do acordo não exime as empresas a concluírem as obras e ações já iniciadas. O Brasil de Fato entrou em contato com a Renova e aguarda um posicionamento.

Também coube a Messias o detalhamento do novo acordo, que segundo ele, foi necessário a partir do “descumprimento sistemático pela Fundação Renova das deliberações do Comitê Interfederativo (CIF), do elevado nível de questionamento judicial dos temas, da lentidão do Judiciário para o julgamento, da ineficiência e descrédito da Fundação Renova e da inviabilidade e lentidão do Comitê Interfederativo (CIF), criado em 2015 para acompanhar o processo de pactuação da reparação.

“Antes de mais nada, é preciso dizer que, após nove anos da tragédia e dois acordos firmados – em 2016, e a repactuação que ocorreu em 2018 –  muitos erros foram cometidos, e também muitos acertos foram obtidos. E a partir desses erros e dos acertos nós podemos refletir conjuntamente, tanto poder público quanto as empresas, e a partir deste momento, nós conseguimos construir a repactuação do novo acordo da Bacia do Rio Doce”, declarou o ministro.

O novo acordo tem previsão de um total de R$ 170 bilhões, considerando que já foram gastos pela Fundação Renova R$ 38 bilhões, o provisionamento imediato de outros R$ 32 bilhões, e outros R$ 100 milhões que serão pagos pelas empresas durante os próximos 20 anos.

Diante do julgamento iniciado na última segunda-feira (22) em um tribunal de Londres, que vai decidir sobre a responsabilização da empresa anglo-australiana BHP Billiton, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, afirmou que o acordo fortalece o princípio da soberania do sistema de Justiça brasileira.

“Eu fui conversar com o presidente Lula e disse que seria muito ruim para o Judiciário brasileiro se esse assunto for resolvido fora do Brasil”, declarou o magistrado. Barroso ainda fez referência às críticas dos movimentos sociais sobre os lucros das mineradoras após o rompimento da barragem. “Tragédias não podem ser tratadas como investimento financeiro. Não faz bem a causa da humanidade a monetização da desgraça”, afirmou o ministro.

Além dos já citados, participaram da reunião representantes do Judiciário de Minas Gerais, Espírito Santo, assim como membros dos ministérios públicos estaduais e federal, como o procurador-geral da República, Paulo Gonet. Também estiveram presentes o vice-presidente Geraldo Alkmin, os ministros da Casa Civil, Rui Costa, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, da Igualdade Racial, Anielle Franco, da Saúde, Nísia Trindade, dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e os governadores dos dois estados atingidos, Romeu Zema (Novo) e Renato Casagrande (PSB), de Minas e Espírito Santo, respectivamente. Também estiveram presentes os presidentes das mineradoras Vale e da BHP.

O acordo

Os recursos serão administrados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES) e divididos em áreas de abrangência, que serão coordenadas pelos diferentes ministérios do governo, assim como o os governos dos estados atingidos.

Transferência de Renda – O acordo prevê R$ 3,75 bilhões para o pagamento de um auxílio mensal a pescadores e agricultores atingidos por até quatro anos. O benefício terá valor inicial de 1,5 salário-mínimo nos três primeiros anos e 1 salário nos últimos 12 meses, e será pago através de um cartão da Caixa Econômica Federal. Essa linha de reparação será coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA).

Atingidos e Recuperação Econômica – Estão previstos R$ 6,5 bilhões para investimento em Programas de Retomada Econômica –PRE, em três eixos: fomento produtivo, desenvolvimento rural e um último que engloba projetos de educação, ciência, tecnologia e inovação. Ainda neste eixo, estão R$ 5 bilhões para constituição de Fundo Popular da Bacia do Rio Doce para investimentos em projetos e programas de retomada econômica e produtiva, e outros R$ 500 milhões para manutenção da Assessoria Técnica Independente -ATI por mais 48 meses, após a assinatura do acordo.

Assistência Social – R$ 640 milhões serão destinados para investimento no fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), nos municípios da Bacia do Rio Doce.

Mulheres atingidas – R$ 1 bilhão será empregado para o pagamento de um auxílio financeiro às mulheres que foram vítimas de discriminação de gênero durante o processo reparatório.

Indígenas, povos e comunidades tradicionais – R$ 8 bilhões serão utilizados para a recuperação dos territórios indígenas que foram atingidos pelo rompimento da barragem. Comunidades que não tinham sido contempladas no primeiro acordo serão inseridas no programa de recuperação. Segundo o governo, foi realizada uma consulta prévia, livre e informada às comunidades para a definição do ponto.

Meio Ambiente – R$ 12,13 bilhões serão investidos na reparação ambiental, sendo R$ 8,13 bilhões que serão alocados em um Fundo Ambiental da União, para o desenvolvimento de ações de recuperação e compensação ambientais, e outros seis bilhões, que ficarão sob responsabilidade dos estados atingidos, para os mesmos fins. Outros R$ 17,46 bilhões vão para Projetos Socioambientais dos Estados, de natureza mista, ou seja, social, ambiental e de retomada econômica da bacia.

Pesca – R$ 2,44 bilhões serão direcionados para o Plano de Reestruturação da Gestão da Pesca e Aquicultura – Propesca e ações a serem desenvolvidas pela União e Estados com o objetivo promover a reestruturação das cadeias produtivas da pesca e da aquicultura, hoje proibidas por decisões judiciais.

Saúde – Para aplicação em saúde coletiva na bacia do Rio Doce serão destinados R$ 12 bilhões, sendo: R$ 3,6 bilhões para investimentos em estudos, infraestrutura e equipamentos e R$ 8,4 bilhões para constituição de Fundo Perpétuo, com o objetivo de utilização dos rendimentos em custeio adicional ao SUS na Bacia.

Saneamento – R$ 11 bilhões serão investidos em obras de saneamento básico nos municípios da bacia, com o propósito de assegurar e antecipar as metas de universalização, com redução de tarifas.

Enchentes – Os estados atingidos vão receber R$ 2 bilhões para criação de um fundo perpétuo, com rendimentos aplicados no enfrentamento às consequências das enchentes, na retirada de lama, recuperação de solos e infraestrutura.

Rodovias – R$ 4,3 bilhões serão empregados na duplicação e melhorias de rodovias federais BR-262 e BR-356, que cortam a bacia do Rio Doce.

Municípios – As 49 cidades atingidas pelo rompimento da barragem receberão R$ 6,1 bilhões, que serão distribuídos conforme índice definido pelo Consórcio dos Municípios – CORIDOCE. Já o município de Mariana, onde ocorreu o crime, receberá sozinho o valor de R$ 1,65 bilhão para o encerramento de uma Ação Civil Pública movida pelo Executivo municipal.

Fiscalização – Finalmente, o acordo prevê R$ 1 bilhão para investimentos no fortalecimento institucional da Agência Nacional de Mineração -ANM, com o objetivo de melhorar sua capacidade de fiscalização de barragens.

Críticas

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), nove anos depois do crime cometido pelas mineradoras, não há o que celebrar. “A primeira coisa dizer que nós não estamos em dia de festa. Essa assinatura, que demorou muito, considerando os nove anos de espera por reparação. E ela existe por causa de pessoas que morreram. Acho que é importante dizer isso. As empresas vão dizer que é uma coisa boa. Estarmos aqui é uma coisa ruim porque é por causa de pessoas que morreram pela negligência das empresas”, declarou Thiago Alves, integrante da Coordenação Nacional do MAB.

Na avaliação de Alves, o valor global previsto no acordo ainda é insuficiente, principalmente se considerado o baixo valor destinado às reparações individuais e o tempo de 20 anos para a aplicação dos recursos. O MAB critica a ausência dos atingidos na mesa de repactuação.

“Alguns dizem que sim, houve participação. O que nós estamos dizendo é o governo federal nos permitiu ter acesso a algumas informações importantes, via Secretaria Geral da Presidência. Mas a Justiça não nos permitiu a participação de social”, afirmou, se comprometendo ainda a insistir na participação dos atingidos durante o processo de aplicação dos recursos e definição das ações prioritárias.

Questionado pelo Brasil de Fato, o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, afirmou que será criado um Conselho Interfederativo de Participação Social com a presença dos atingidos. “Nossa proposta é que seja um conselho paritário, isto é, 50% representantes do governo federal, 50% dos movimentos sociais organizados na bacia e os atingidos e representantes dos atingidos. E que esse conselho possa deliberar, a partir dos editais formados no próprio conselho para um fundo poder tomar as decisões políticas e técnicas dos projetos que serão encaminhados para o fundo para a execução e operacionalização do BNDES”, disse o ministro.

Em nota divulgada na quinta-feira (24), o MAB considera que problemas estruturais relacionados às atividades de mineração são “resultado direto do processo de privatização”. “O crime em Mariana e todas as violações decorrentes dele é resultado direto do processo de privatização, que explora todo povo brasileiro, se apropria de nossas riquezas e beneficia exclusivamente o sistema financeiro e a ganância do grande capital”, diz o comunicado.

‘Porta de esperança’

Para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a importância do acordo também se estende ao povo que vive nos 37 assentamentos ao longo da bacia do Rio Doce.

“Viemos ao longo desses 9 anos lutando por justiça e construindo o Programa Popular de Agroecologia da Bacia do Rio Doce”, afirmou o movimento, em nota.

“Abre-se um tempo de muita esperança, de avanços, a partir da repactuação assinada hoje. Temos a certeza de que com a oportunidade de ampliação de nosso Programa de Agroecologia, poderemos alcançar mais milhares de hectares de plantio de florestas nativas e aumentar para grandes escalas a produção de alimentos saudáveis”, acrescenta o texto.

Para o MST, reparar o crime cometido é obrigação das empresas e do Estado e, portanto, aos movimentos populares, cabe o compromisso histórico com a luta por justiça social e ambiental, para que as instituições cumpram com suas obrigações.

Leia a nota do MST completa clicando neste link.

Leia a nota do MAB completa clicando neste link.

Do Brasil de Fato

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