O acesso de negros, indígenas e pessoas de baixa renda a instituições federais de ensino superior estaria dificultado se não houvesse a Lei de Cotas, que completa dez anos de implementação hoje e está na iminência de ser revista pelo Congresso Nacional. Uma avaliação de órgão vinculado ao Ministério da Economia aponta que a medida, que reserva vagas a cidadãos e cidadãs brasileiros dentro desses grupos, tem um saldo bastante positivo ao país. Ou seja, a despeito de todas as críticas do presidente Jair Bolsonaro (PL) à lei e outras ações afirmativas implementadas em governos petistas, o próprio governo atual reconhece os ganhos.
Segundo reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, Relatório do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, publicado neste mês, mostra evidências de que a Lei de Cotas – instituída em 29 de agosto de 2012, mas que já vinha sendo implementada desde o início dos anos 2000 – provocou maior inclusão na universidade e não houve impactos negativos no desempenho dos alunos. Ou seja, apesar de todo o burburinho causado na época de sua implementação, inclusive por parte de celebridades como Caetano Veloso, intelectuais, como o poeta Ferreira Gullar, e grande parte da imprensa, a lei não prejudicou a qualidade dessas instituições.
A lei mostra que o percentual de ingressantes de baixa renda (com renda per capita até 1,5 salário mínimo) nas instituições públicas de educação superior passou de 50%, em 2011, para 70% em 2019, aproximando-se da proporção observada na população. Para os estudantes pretos, pardos e indígenas em universidades federais, a fatia entre os ingressantes foi de 42% para 51% (variação superior ao aumento dessa população).
Ainda no âmbito das federais, os alunos de escolas públicas passaram de 50,4% entre os ingressantes em 2011 para 64,8% em 2019, segundo o amplo relatório produzido pelo governo. O estudo, que trata não apenas das cotas, mas de toda a rede federal de ensino superior, foi produzido por integrantes de órgãos como a CGU (Controladoria Geral da União), Secretaria do Tesouro Nacional e Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Outro levantamento realizado pelo Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas em 980 publicações aponta que 71% das pesquisas realizadas avaliaram positivamente as cotas raciais e 62% as cotas sociais. Os estudos analisados foram publicados entre 2006 e 2021.
Em relação às cotas raciais, 53% dos estudos avaliaram a política como “bastante positiva”, 18% como “levemente positiva” e 12% como negativas (com 16% sem identificação clara). Já em relação às cotas sociais, 43% foram “bastante positivas”, 19% “levemente positivas” e 12% negativas (25% sem identificação).
A Lei de Cotas prevê possibilidade de revisão do programa de acesso este ano, uma década após seu início. Foram apresentados na Câmara dos Deputados 19 projetos nesse sentido, segundo o Observatório do Legislativo Brasileiro. Desse total, nove são favoráveis, um é neutro e nove são contrários, segundo o órgão. Tal disputa está centrada na manutenção ou eliminação do recorte racial.
Mas a expectativa é de que esse assunto esteja no debate somente depois do fim das eleições, possivelmente em novembro.
Avaliação de desempenho de cotistas mostra que Lei de Cotas não prejudicou notas, pelo contrário
Embora muitos cotistas ingressem nas universidades com notas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2 a 8% inferior às de não cotistas, o estudo do órgão vinculado ao Ministério da Economia mostra que o gargalo inicial não interfere no desempenho deles.
Trecho do documento divulgado pela reportagem da Folha de S.Paulo mostra que “a nota média de cotistas no Enade (Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes) é próxima ou até superior à dos demais alunos, e as taxas de conclusão de curso são semelhantes (exceto para cotistas de baixa renda, que evadem mais)”, diz um dos documentos do relatório. “Por consequência, a excelência acadêmica das IES [Instituições de Ensino Superior] envolvidas parece ter sido preservada.”
A lei que institui reserva de acesso a negros, indígenas e pessoas de baixa renda nas universidades federais começou a ser implementada no início do ano 2000, tendo, portanto, demorado mais de dez anos para ser aprovada no Congresso. A forte mobilização de movimentos negros e de direito à educação e uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a constitucionalidade da medida, de abril de 2012, foram decisivas para a sua aprovação. Pesou muito para o avanço o empenho da bancada do então governo de Dilma Rousseff (PT) para as votações na Câmara e no Senado.
A primeira universidade de grande porte a reservar vagas para aquele público foi a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 2003. No mesmo ano, a UnB (Universidade de Brasília) seria a pioneira a ter cotas raciais. A USP (Universidade de São Paulo) foi uma das últimas a reservar vagas – apenas a partir de 2018 -, embora não tivesse tal obrigação por ser estadual.
Levantamento da Folha de S.Paulo em 2012 apurou que havia 52.190 vagas reservadas a cotistas nas universidades federais, de um total de 244.263. Com a Lei de Cotas sancionada em 29 de agosto de 2012, a política passou a valer para todos cursos e turnos na totalidade de institutos e universidades federais ligadas ao Ministério da Educação, estipulando que metade das vagas deveriam ser ocupadas por estudantes de escola pública, com reservas de vagas para pretos, pardos e indígenas (de acordo com proporção de cada estado) e para estudantes com renda de até um salário mínimo e meio per capita.
A implementação teve início em 2013, mas só em 2016 foi alcançada de maneira ampla. “Desde 2013 já se consegue enxergar mudanças, em magnitude menor, mas já tem uma quebra de tendência”, explica o pesquisador Adriano Senkevics, entrevistado pela Folha de S.Paulo, cujos trabalhos foram citados no relatório do governo.
Por sua vez, a professora Rosana Heringer, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que todos os posicionamentos contrários às cotas se ancoravam mais em convicções do que em dados. “A partir de 2016, com o primeiro ciclo de cotistas se formando, temos dados empíricos, com informações palpáveis e resultados mais incontestáveis”, diz ela.
Estudo coordenado por ela mostra que o grupo que registrou a maior variação percentual no número de ingressantes por reserva de vagas foi o de negros de escola pública e de baixa renda: alta de 205% entre 2013 e 2109.
“Ter alunos negros em cursos seletivos, nas universidades mais seletivas é, sem dúvida, a maior evidência de sucesso das cotas”, diz. “A diferença que a lei faz é ter cotistas negros da escola pública em cursos como medicina, ter aqueles corpos, ter aquelas pessoas nas salas”.
Dificuldades econômicas fazem alunos cotistas desistirem da educação
O lado triste da moeda é que, em um país tão desigual quanto o Brasil, não basta ter ações afirmativas sem o respaldo do Estado para que esses alunos possam levar adiante os seus sonhos.
As dificuldades econômicas do Brasil somadas aos cortes financeiros do governo federal às políticas de permanência são os dois principais motivos que levam cotistas a abandonarem as universidades. Esta é a constatação de uma análise do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sobre a “V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior Brasileiras”, que ouviu 424 mil alunos de 63 universidades federais.
Os pesquisadores afirmam que as políticas de permanência são abaladas pelos cortes de recursos do ajuste fiscal, como a Emenda Constitucional 95/2016, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do teto de gastos, que bloqueia verbas para as universidades.
Um exemplo é a UFRJ. O edital para a distribuição de bolsas aos cotistas no primeiro semestre letivo de 2022 recebeu mais de 3.600 inscrições para as diferentes modalidades de auxílio, mas atendeu apenas 1.700 solicitações. Os beneficiários são selecionados conforme renda familiar, local de moradia e condição de saúde do estudante e da família.
Redação ICL Economia
Com informações da Folha de S.Paulo e agências