A projeção recente do mercado para a inflação no Brasil este ano expõe ainda mais a urgência de foco em um tema que esteve sob os holofotes ao longo da campanha eleitoral, o preço dos alimentos. Nessa segunda-feira (5), o boletim Focus, do Banco Central (BC), divulgou que a expectativa de instituições financeiras para o índice em 2022 aumentou e chegou a 5,92%.
Ainda de acordo com o documento também houve alta na estimativa para 2023, que ficou em 5,08%. Os dois índices são superiores ao teto da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional do BC, de 2% a 5%.
Nos dados preliminares de 2022, os alimentos aparecem como os os itens que mais causam impacto nos índices de inflação. As dez maiores variações registradas em outubro, por exemplo, ocorreram nesses produtos.
Mesmo ao longo dos três meses consecutivos de deflação – impulsionada pelo controle artificial promovido pelo governo de Jair Bolsonaro no preço dos combustíveis – garantir a comida na mesa continuou sendo um desafio.
As movimentações da equipe de transição indicam que o governo eleito, de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), trata como tarefa imediata o freio nas constantes variações para cima em itens básicos. Há medidas que já estão sendo ventiladas, como a criação do Ministério da Agricultura Familiar e Alimento Saudável. Mas o problema é multifatorial e exige soluções estruturais.
Economistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam que mudanças no modelo de agricultura são essenciais e é preciso também deixar de lado o discurso de que faltam recursos para investimentos sociais. “Vai muito além do que está colocado na agenda”, afirma o economista do Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra), Gustavo Noronha.
Segundo ele o Brasil precisa repensar o papel da agricultura para o país, romper com o modelo colonial de concentração de terra e rever o modelo de produção.
“Nós temos um problema na questão do nosso modelo para a agricultura que é um problema estrutural. Não vamos resolver um problema estrutural com medidas emergenciais. No curto prazo, a margem de manobra não é tão ampla assim. Quase todos os estudos, quando pensam em qual é o papel da agricultura no desenvolvimento de um país, uma coisa que é consenso é que é garantir a oferta de alimentos. Esse é o principal papel da agricultura. No nosso entendimento, temos tido uma dificuldade de cumprir isso no último período.”
A volta do Brasil ao mapa da fome e a escalada no número de famílias em insegurança alimentar têm relação direta com o aumento nos preços dos alimentos.
Nas ações que o novo governo sinaliza para conter o movimento estão políticas diversas e amplas. Elas vão dos preços praticados pela Petrobras nos combustíveis à retomada do protagonismo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) no controle dos preços e na garantia do abastecimento interno.
Estoques internos regulavam preços de alimentos
As compras públicas da Conab atuavam como reguladoras dos preços. O governo garantia estoques de produtos básicos, como arroz, feijão e milho e vendia a valores mais baixos em caso de disparadas no mercado. Na gestão de Jair Bolsonaro (PL), mais de vinte unidades de armazenamento foram fechadas.
De acordo com Gustavo Noronha, garantir uma atuação incisiva da Conab é a solução mais rápida, mas a questão estrutural a ser atacada é a ocupação cada vez maior de terras por monoculturas de soja, milho e cana para exportação e a diminuição do plantio de alimentos.
“O resultado mais imediato em curto prazo vai vir através de uma política de compras da Conab, que vai dar a garantia ao produtor. Só que isso resolve em curto prazo. Tem alguns outros problemas. Ter um modelo do campo muito focado na comoditização [produção de matérias primas para exportação, como soja e milho] tem um impacto muito grande. A área plantada dessas culturas tem aumentado significativamente. Os preços dos alimentos vão ficando ancorados no mercado internacional de commodities. O efeito é muito nocivo. O produtor, ele não tem a garantia de compra aqui para ele produzir outra coisa que o governo vai comprar. O que ele vai escolher? Vai vender fora. É mais negócio vender fora.”
Para mirar nessa questão é preciso garantia de investimentos na agricultura familiar e crédito para a produção de alimentos. O professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daniel Negreiros Conceição destaca que sem gasto público, o desenvolvimento do setor fica inviabilizado.
“Para resolvermos esse problema, teremos que voltar a investir em produção de alimentos domésticos. Um grupo que não gosta desse papo é o grande agro, que é exportador. Quem costumava satisfazer a demanda doméstica de maneira mais saudável era o pequeno e médio produtor, a produção familiar, essa produção que vai para os mercados. Esse tipo de produção não tem sido assistido. Tem que voltar a receber o incentivo necessário, a ter crédito generoso, programas de apoio técnico. Tudo isso exige gasto público. Isso exige injeção de recursos.”
Renda e acesso
A manutenção de um programa de transferência de renda de R$ 600 mensais também está na lista de fatores que podem alinhar os preços dos alimentos minimamente à realidade econômica das famílias. Daniel Negreiros Conceição alerta, no entanto, que é preciso ir além. Nas palavras dele, o valor apresentado na PEC da transição para manutenção do Bolsa Família em R$ 600 é o mínimo.
“Isso já era dado. A gente tem que propor, voltar a ter uma agenda de investimentos, voltar a fortalecer os serviços públicos novamente. Isso significa repor perdas salariais do funcionalismo, voltar a custear decentemente as universidades públicas, a Saúde, tudo isso.”
O economista afirma ainda que o desmonte promovido desde 2016 foi fundamentado pelo discurso “mentiroso” da falta de recursos. Segundo ele é preciso “parar de fingir que o governo não tem recursos para lidar com o problema. É dali que vem o horroroso teto de gastos”.
O fim da fome na agricultura camponesa
A equipe de transição de Lula sinaliza que vai retomar ações de incentivo à produção de alimentos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Segundo o IBGE, o total de unidades de produção da agricultura familiar diminuiu 9,5% entre 2006 e 2017. Da lá pra cá, a situação piorou e as roças de feijão, arroz e mandioca ocupam cada vez menos espaço.
Gustavo Noronha aponta que só a reforma agrária pode reverter essa dinâmica.
“Precisamos repensar o próprio modelo do campo. Além da questão econômica, tem uma questão política muito forte. Se você observar a trajetória dos países que são hoje considerados desenvolvidos, todos passaram por uma mudança radical na estrutura fundiária. O golpe, o bolsonarismo, isso tudo é uma aliança orgânica das elites tradicionais. Se não houver essa ruptura você não tem projeto de desenvolvimento para o país e só tem essa ruptura com reforma agrária radical.”