O mercado sem dúvidas é a grande estrela desse começo de ano. Estão ouvindo tanto essa entidade misteriosa e estão tão preocupados com seus delicados sentimentos que deve ser o ente mais citado e ouvido no país desde o final da última eleição. Pelo que sabemos, ele não está nada feliz com as medidas propostas até agora por Lula e Haddad no campo econômico e reage com bastante tristeza sempre que é contrariado. É com certeza uma entidade bastante delicada.
Mas um fato marcou essa semana e, dessa vez, o dito mercado parece ter esquecido de ser ouvido, para dar suas opiniões e inclusive saber como seria sua reação após um caso tão absurdo. O caso não foi público, não foi uma possível medida fiscal “irresponsável”, visando melhorar a vida da população, nem mesmo uma fala desagradável sobre sua figura. O caso foi, na verdade, um de seus grandes participantes num verdadeiro escândalo contábil.
O caso das Americanas é emblemático neste sentido, pois quem ficou esperando a reação do nosso querido mercado decepcionou. Algumas quedas pontuais em ramos específicos de empresas na bolsa de valores e nada além disso. O mercado não demonstrou uma grande preocupação, não teve nenhuma reação violenta e não soltou nenhuma nota pública sobre os acontecimentos. Na verdade, estão pouco falando desse caso na mídia, e daí a opinião do mercado parece não importar neste caso.
Alguns argumentos já foram ditos defendendo o mercado neste caso. Quando o escândalo é privado, este não onera a população no geral, e o bondoso mercado na verdade está preocupado somente com a qualidade de vida do cidadão comum brasileiro. A verdade, porém, é outra, pois expressiva parte da dívida das Americanas são com empresas públicas. A empresa possui extensa dívida com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal e com o BNDES. E agora que a recuperação judicial está em andamento, essa dívida deve ser somente parcialmente paga e em um montante muito reduzido. Ou seja, a fraude privada vai onerar o público.
Para piorar a situação, pouco se espera que os responsáveis por essa situação sejam punidos. Os bilionários donos do negócio, tidos como verdadeiros magos do capitalismo brasileiro, já sinalizaram que pouco vão renunciar a seus bilhões para recompor o rombo da empresa, além disso, nada deve ocorrer com a auditoria que deixou passar tal aberração contábil. Na verdade, em pouco tempo essas pessoas voltarão a situação normal, e serão capazes até de ganharem matérias mostrando como tais almas benevolentes conseguiram “salvar” a empresa.
E quem vai perder com isso? Obviamente os pequenos acionistas que tinham alguma ação da empresa, que já vale 1/10 do que valia antes do escândalo. Muitos nem sabiam que estavam expostos a tal risco, pois tinham recursos em fundos que tinham tal empresa no portfólio e acabaram vendo tal reserva cair substancialmente nessa última semana. Essas pessoas não vão conseguir recuperar seus recursos, vão ter que arcar com seu prejuízo sem ajuda alguma do estado brasileiro ou dos acionistas majoritários. Como sempre, o lado mais fraco do jogo vai ser o verdadeiro perdedor.
Mas o mercado não está preocupado com as pessoas. São as regras do jogo, segundo a entidade. A empresa que não respeitar as regras será “naturalmente punida” segundo tal visão, e as coisas se regularão normalmente. E em breve o mercado voltará a sua rotina normal, se preocupando com as falas do governo Lula e da situação fiscal do país. Em breve ele será consultado quase que diariamente sobre o cenário econômico e tal pecado será esquecido, e talvez lembrado em alguma aula de história econômica do Brasil daqui a alguns anos.
*Deborah Magagna é economista do ICL, graduada pela PUC-SP, com pós-graduação em Finanças Avançadas pelo INSPER. Especialista em investimentos e mercados de capitais
*André Campedelli é economista do ICL e professor de Economia. Doutorando pela Unicamp, mestre e graduado em Ciências Econômicas pela PUC-SP, com trabalhos focados em conjuntura macroeconômica brasileira