No cenário político, a expressão “porta giratória” é usada para situações em que agentes públicos, integrantes do governo ou servidores assumem cargos na iniciativa privada em áreas ligadas às atividades que exerciam no setor público – ou o caminho inverso, quando ex-empregados da iniciativa privada vão para o governo com poder para regular os setores nos quais trabalhavam. Para integrantes do alto escalão do governo Bolsonaro isso se tornou comum.
Dois desses casos foram revelados em reportagens do Brasil de Fato: os de Jacson Barros, ex-diretor do DataSUS e, atualmente, na Amazon Web Services; e Paulo Uebel, ex-secretário do Ministério da Economia e, atualmente, em uma empresa que disputa leilões de saneamento.
A Lei nº 12.813, de 2013, que dispõe sobre conflitos de interesse no governo federal, determina que pessoas que ocuparam funções de governo cumpram quarentena de pelo menos seis meses após demissão.
O tema tem chamado cada vez mais a atenção de analistas políticos brasileiros. Em abril, o economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), promoveu debate sobre o assunto ao lado dos também economistas Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Uallace Moreira, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Anfitrião do debate, realizado no programa Conexão Xangai, em seu canal no YouTube, Roncaglia foi taxativo: “O que nos incomoda, e o motivo de existir deste programa, é que a gente consiga colocar esses debates de uma maneira clara para quem está nos acompanhando e dizer: ‘isso não é normal’. Seja você comunista, seja você liberal, isso não é normal em qualquer situação que se chama de democracia”.
“Isso é algo para incomodar, e parece que não incomoda mais ninguém. Dizem que faz parte do jogo é, que é assim mesmo. E a gente está aqui para dizer: ‘Não é. Não pode ser em uma democracia digna do nome’. Em um país que quer construir instituições sólidas, ou pelo menos fica dizendo por aí que a gente tem que ter instituições sólidas, aceitar algo imoral como isso é certamente o ocaso das abordagens institucionalistas, que dizem que está tudo bem”, afirmou.
Costa Pinto afirmou que o fenômeno chegou “ao extremo” no Brasil. “A questão da porta giratória é um elemento que vem acontecendo no mundo inteiro. Isso acontece nos Estados Unidos, acontece na Europa. É lógica de funcionamento da não-separação entre o público e o privado. Isso tem acontecido de uma forma cada vez mais ampliada e o caso brasileiro tem chegado ao seu extremo”, declarou.
“Isso não é considerado nada grave. Você teria que passar por um processo de profundo regulatório para impedir que informações fossem repassadas. Há uma fusão entre o público e o privado, e isso é corrupção. A não separação do público e privado gera uma corrupção estrutural”, disse.
Segundo o economista da UFRJ, os setores dominantes operam por meio de seus representantes. “São ‘despachantes’, como diz um grande amigo, quase sempre economistas do mainstream. Entram no Estado já na expectativa de voltar para o setor privado em cargos mais altos. Ou, então, vêm do setor privado, dos grandes bancos, para serem diretores do Banco Central e depois voltar com a informação”, explicou.
“Essas informações vão facilitar a forma como o setor privado ganha dinheiro em cima do Estado. Você vê hoje uma configuração em que servidores públicos estão exercendo cargos em uma lógica de porta giratória: entra e aumenta o passe para ganhar mais dinheiro depois”, concluiu.
Moreira rebateu o argumento de que o fenômeno ocorre em função do bom nível dos envolvidos: “Muitas vezes as pessoas tentam desqualificar o questionamento que a gente faz apontando justamente a qualidade técnica dos profissionais. Eu repito: a gente não questiona a qualidade técnica, o que estamos debatendo é que o nível de promiscuidade chegou a um patamar tão alto que as pessoas estão naturalizando esse tipo de comportamento”.
Segundo ele, “o Estado claramente está sendo capturado por interesses de uma minoria em detrimento dos interesses da sociedade”. “Isso é o que está sendo colocado. Isso vai deixando em evidência que a gestão da política pública perde o seu completo sentido, porque você está privatizando a política pública”, finalizou Moreira.
Relembre os casos:
Paulo Uebel saiu do Ministério da Economia para a Cristalina Saneamento
Ex-secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital no governo de Jair Bolsonaro (PL), o empresário Paulo Uebel deixou a equipe do ministro Paulo Guedes (Economia) em agosto de 2020, depois de 18 meses no cargo. No posto, ajudou a gestão a atuar em favor da privatização de empresas públicas. Entre as “conquistas” do projeto econômico do governo, está a aprovação do Marco Legal do Saneamento Básico, que prevê a participação da iniciativa privada no setor de água e esgoto. É justamente nessa área em que Paulo Uebel está atuando desde maio de 2021, quando fundou a empresa Cristalina Saneamento.
Segundo Uebel, em sua conta na rede social LinkedIn, a empresa “tem o papel de integrar soluções e parcerias em saneamento, além de atuar como uma operadora de serviços públicos”. Em entrevista ao jornal Valor Econômico publicada em fevereiro deste ano, ele disse que o objetivo principal é disputar leilões de privatização dos sistemas de saneamento nos municípios brasileiros. Em março deste ano, o Brasil de Fato entrou em contato com Uebel por meio de sua conta no LinkedIn. A reportagem citou as críticas que o empresário sofreu nas redes sociais e abriu o espaço para manifestações. Caso Uebel retorne o contato, sua reposta será adicionada à reportagem.
Jacson Barros saiu do Ministério da Saúde para a Amazon Web Service
Ex-diretor do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Data SUS), Jacson Barros, um dos responsáveis pela adoção do serviço de nuvem Amazon Web Services pelo Ministério da Saúde, assumiu um cargo na própria Amazon menos de um mês após deixar o governo. Durante sua gestão à frente do DataSUS, Barros apoiou a contratação dos serviços da Amazon para a estrutura de armazenamento de dados do departamento, que possui informações sobre saúde de toda população brasileira. Ele permaneceu no cargo no governo federal de fevereiro de 2019 a agosto de 2021.
Em abril de 2020, o Ministério da Saúde e a Embratel anunciaram parceria para migrar os dados da rede de saúde pública para o Amazon Web Service. Na ocasião, ainda no governo, Barros celebrou a parceria: “Estamos pavimentando uma estrada para o fortalecimento da estratégia de saúde digital para o Brasil”. Barros ainda permaneceu no cargo por mais de um ano. Em 7 de agosto de 2021, foi o convidado do podcast oficial da Amazon Web Services, ainda como diretor do DataSUS, onde explicou o papel do órgão e a importância de serviços em nuvem na saúde pública. Menos de uma semana depois, em 12 de agosto, foi exonerado do cargo.
Em setembro, menos de um mês após deixar o Ministério da Saúde, assumiu o posto de Gerente de Desenvolvimento de Negócios Estratégicos da Amazon Web Services. Antes do final do ano, já estava participando de eventos públicos representando a empresa. Barros completou sete meses no cargo em março deste ano.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério da Saúde para verificar se o caso chegou a ser analisado no Comitê de Ética ou outro órgão de controle interno. Não houve resposta. A reportagem também procurou a assessoria de imprensa da Amazon e Jacson Barros e pediu o posicionamento de cada um dos envolvidos. Até o momento, não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.
Roberto Castello Branco saiu da Petrobras para a 3R Petroleum
O economista Roberto Castello Branco, que presidiu a Petrobras de janeiro de 2019 a abril de 2021 por escolha do presidente Jair Bolsonaro, assumiu nesta semana o conselho de administração da petroleira que mais se beneficiou da política de venda de partes da própria estatal. A 3R Petroleum, com sede no Rio de Janeiro, comprou nove campos de petróleo da Petrobras desde 2018 – ou seja, mais de um terço dos 26 bens negociados pela estatal em ações de desinvestimento. A segunda empresa que mais comprou ativos da estatal adquiriu três.
Dados apresentados pela própria 3R, com base em informações públicas fornecidas pela Petrobras, indicam um gasto superior a US$ 2 bilhões nas compras (quase R$ 10 bilhões na cotação atual). Em conferência com investidores, o presidente executivo da 3R, Ricardo Savini, afirmou que o custo foi baixo, levando em conta a reserva de petróleo existente em cada poço.
O Brasil de Fato tentou entrevistar Roberto Castello Branco por meio da 3R, da Omega Energia e da Vale (ele também faz parte do conselho de administração da empresa). Não conseguiu contato com o economista. A 3R Petroleum também foi questionada sobre a indicação do ex-presidente da Petrobras ao seu conselho administrativo e sobre seus negócios com a estatal. Não respondeu.
Mansueto Almeida saiu do Ministério da Economia para o BTG Pactual
Ex-secretário do Tesouro do Ministério da Economia chefiado por Paulo Guedes, Mansueto Almeida deixou o governo para ir trabalhar no banco BTG Pactual, que tem Guedes como um de seus fundadores. A informação foi revelada pelo The Intercept Brasil. Em junho de 2020, ele deixou o governo afirmando que iria “descansar”.
À época, ele negou que negociava um novo emprego na iniciativa privada: “Não é verdade. Seria maluquice eu estar no governo e vendo para onde ir. Vou definir isso na quarentena depois que sair”, em referência ao período no qual agentes públicos devem cumprir antes de assumir cargos na iniciativa privada. Contudo, no primeiro mês de quarentena, a ida de Mansueto para o BTG Pactual foi anunciada.
Procurado, o BTG Pactual afirmou que está sempre em busca dos melhores profissionais para integrar a instituição, independentemente de sua atuação prévia ter sido na iniciativa pública ou privada e que, ao contratar ex-servidores, obedece à legislação. “Mansueto Almeida cumprirá integralmente seu período de quarentena sem nenhum vínculo com o BTG Pactual e só passará a atuar como economista-chefe global a partir de 18 de janeiro de 2021”, disse o banco, em nota divulgada à época. Mansueto não respondeu.
Sergio Moro saiu do Ministério da Justiça para a Alvarez & Marsal
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) protocolou, em janeiro, uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra o ex-juiz Sergio Moro. Por meio da petição, o grupo de juristas solicita a instauração de um inquérito para apurar os valores e as condições da contratação do ex-juiz pela empresa de consultoria estadunidense Alvarez & Marsal (A&M).
A empresa é administradora judicial de companhias que foram investigadas pela Operação Lava Jato. Por isso, os juristas também pediram a investigação da relação entre Moro e as companhias assessoradas pela consultoria, como a Odebrecht. Moro permaneceu na A&M por 13 meses.
Em nota, a associação destaca que “Moro, enquanto juiz, julgou e condenou executivos das empresas clientes da Alvarez & Marsal no processo de recuperação judicial. Teve acesso a informações privilegiadas que possuíam potencial de impacto em favor de seu trabalho na empresa”.
Em seu perfil no Twitter, o ex-juiz afirmou que não atuou “em casos de conflito de interesses”. Moro também disse que repudia “as insinuações levianas do Procurador do TCU” e lamenta “que o órgão seja utilizado dessa forma”. Ele informou ainda que irá divulgar todos os seus ganhos enquanto funcionário da empresa.
Caio Megale saiu do Ministério da Economia para a XP Investimentos
Caio Megale foi secretário de indústria e comércio na Secretaria Especial da Fazenda, ligada ao Ministério da Economia, tendo participado da transição do governo e permanecendo até o fim de julho de 2020. No mês seguinte, a XP Investimentos anunciou sua a contratação para o cargo de economista-chefe. No posto ele lidera o time de análise macroeconômica da plataforma de investimentos.
Economista graduado pela USP e mestre pela PUC-Rio, Caio Megale foi, entre 2019 e 2020, secretário de indústria e comércio e diretor na secretaria especial da Fazenda no Ministério da Economia. Antes, entre 2017 e 2018, foi secretário municipal da Fazenda em São Paulo.
Por meio de nota publicada durante a sua contratação, Megale se disse “honrado com a oportunidade de se juntar ao time da XP”. Guilherme Benchimol, CEO da XP, disse que “Caio é um dos mais brilhantes economistas de sua geração” e que é “um privilégio contar com ele à frente do time de economia”.
Brasil de Fato