Artigo de Deborah Magagna e André Campedelli *
A chamada PEC Kamikaze foi aprovada no apagar das luzes da quinta-feira da semana passada (30/6), substituindo a chamada PEC dos Combustíveis, que era uma das principais apostas eleitorais do governo Bolsonaro. Agora, o governo federal lança mão de uma série de medidas de estímulo a programas sociais, em caráter emergencial, que devem ter efeito apenas até o fim do ano. Com isso, o Planalto tenta reverter a imagem desgastada e a desvantagem nas pesquisas eleitorais do presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição.
A Proposta de Emenda à Constituição dos Auxílios (a famigerada Kamikaze) fala em elevar o piso do Auxílio Brasil para R$ 600 até o final de 2022, além de zerar a fila do benefício, ampliando o orçamento para tal finalidade. Também busca aumentar o vale gás para R$ 120, criar um auxílio de R$ 1.000 para os caminhoneiros, além de um benefício para taxistas, ainda sem valor definido.
Para finalizar, a proposta busca implementar o chamado Estado de Emergência, que isentaria legalmente o governo de possíveis quebras de regras fiscais e eleitorais devido à adoção do pacote.
Um primeiro ponto que precisa ser levantado é que existe uma série de críticas possíveis ao pacote, mas estamos errando o alvo na maior parte delas, ao comprarmos, por exemplo, o discurso dominante da austeridade fiscal e do rombo no orçamento que essa medida pode gerar.
As principais críticas devem vir principalmente da falácia que agora foi exposta aos olhos de todos: a de que as regras fiscais só possuem uma função na economia brasileira, que é impedir qualquer medida de caráter mais desenvolvimentista que governos de esquerda queiram implantar.
A história recente mostra que o rigor fiscal só deve ser aplicado aos governos de esquerda, sendo que a leniência com as sagradas regras fiscais impostas pelo mercado são muito maiores quando se trata de um governo de direita dito liberal na economia.
O governo Bolsonaro e o Chicago Boy Paulo Guedes cansaram de desrespeitar todos os limites legais sobre o orçamento público e as medidas que deveriam ser tomadas em relação às regras fiscais, mostrando que, de fato, elas só existem para impedir iniciativas chamadas “populistas” que partam de governos populares.
Os governos com maior responsabilidade fiscal foram justamente aqueles toda hora acusados de farra fiscal desenfreada. O governo Lula entregou em todos os seus anos um superávit primário vigoroso, dentro da meta estabelecida, tendo, inclusive, aumentado a meta de superávit logo nos primeiros anos do seu mandato.
A ex-presidenta Dilma Rousseff também entregou a meta fiscal em todos os anos, mesmo que tenha sido negativa em 2015, sendo prevista dentro da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). A mudança da meta fiscal naquele ano, inclusive, foi alvo de enorme polêmica, com os grandes comentaristas financeiros advogando por cortes ainda maiores nas contas públicas para que a ex-presidenta pudesse apresentar um resultado positivo naquele momento.
O único pecado cometido pela esquerda, as chamadas “peladas fiscais”, foi punida com o maior rigor possível, com o golpe de 2016. Importante ressaltar que as chamadas “pedaladas” não são consenso, pois diversos economistas mostram que o que foi feito não pode ser configurado como quebra de regra fiscal.
A partir daquele episódio foi criada regra fiscal mais rígida no país, o chamado teto de gastos, que corrige o limite de gastos a serem feitos pela inflação passada, ou seja, não permite aumento real de gastos. Essa é uma das regras fiscais mais controladoras do mundo, e sua eficácia já foi amplamente abordada neste espaço.
O teto de gastos já nasceu para morrer, devido aos problemas gerados no médio prazo, e morreu bem no governo mais liberal da economia brasileira, o atual.
Agora, o governo mais liberal do ponto de vista econômico que este país já teve acaba de mandar qualquer vestígio de responsabilidade fiscal para o espaço com a PEC do Auxílio. Mas isso mostra somente uma coisa: que o discurso sobre falta de dinheiro e impossibilidade de tomar alguma atitude para amenizar a vida da população nesses últimos anos, inclusive durante a pandemia, era só mais uma desculpa para não gastar numa situação fiscal que, até esse momento, se encontrava controlada, segundo as próprias regras fiscais. Esse deve ser o ponto abordado na crítica: a falta de vontade de fazer somente agora algo que já poderia ter sido feito há muito tempo.
Sabemos que a medida é eleitoreira, que busca aumentar os votos e reduzir a distância entre Bolsonaro e Lula. Ao mesmo tempo, sabemos que os senadores ficaram numa encruzilhada, sendo impossibilitados de votar contra esse pacote sob o risco de serem taxados de pessoas que votaram contra o aumento de benefícios para a população mais carente.
Mas esse não deve ser o ponto principal. O ponto principal é que as regras fiscais são convenientes para frear medidas em um governo de esquerda e desaparecem quando um governo de extrema-direita, como é o caso do atual, precisa delas para melhorar sua imagem.
Entrar no discurso fiscalista, sobre risco fiscal e rombo nas contas públicas, somente vai fazer mal ao debate heterodoxo sério do país. Mesmo com tamanho aumento dos gastos públicos, dificilmente vai existir um cenário fiscal desfavorável durante o próximo governo, a não ser que a régua para medir a situação seja a mesma de hoje, a qual já sabemos que deve ser mudada num eventual futuro governo Lula.
Lembremos que, mesmo que ajude a imagem de Bolsonaro, isso vai aliviar milhões de brasileiros que estão passando fome, com renda reduzida, vivendo sem emprego ou com empregos precarizados e que precisam escolher entre pagar o gás ou a conta de luz. Essas pessoas vão ter pelo menos seis meses de alívio depois do desastroso governo Bolsonaro.
Portanto, a crítica deve ser certeira. Ela deve bater no coração do discurso que permeia o debate econômico brasileiro desde 2015. Ela deve ser sobre a farsa que é a política de austeridade fiscal e sobre o cenário fiscal saudável que deve existir.
O mais liberal dos ministros da fazenda/economia foi capaz de contrariar as regras fiscais, então, se até ele pode deixar suas convicções de lado, por que a esquerda e a heterodoxia precisam agora embarcar nesse debate fiscalista? Vamos criticar aquilo que deve ser criticado, aliás, não faltam críticas possíveis à dupla Bolsoguedes. Contudo, não vamos cair na armadilha de sermos fiscalistas, mesmo que seja tentador no momento.
Assista ao comentário de Deborah Magagna sobre o tema no ICL Notícias de hoje (4)
*Deborah Magagna é economista do ICL, graduada pela PUC-SP, com pós-graduação em Finanças Avançadas pelo INSPER. Especialista em investimentos e mercados de capitais
*André Campedelli é economista do ICL e professor de Economia. Doutorado pela Unicamp, mestre e graduado em Ciências Econômicas pela PUC-SP, com trabalhos focados em conjuntura macroeconômica brasileira