Artigo: Um tango monetário argentino

Milei quer repetir os erros do passado e dolarizar novamente a Argentina
16 de outubro de 2023

Artigo de Deborah Magagna e André Campedelli *

Uma coisa que é conhecida de todo mundo é a situação econômica frágil que a Argentina passa nos últimos anos. Desde o começo da década de 2010, uma série de crises inflacionárias ocorreu no país em sejam presidentes de direita como Macri ou peronistas como Alberto Fernandez, todos tentaram sem muito sucesso resolver esse que é um dos principais problemas econômicos do país até esse momento.

Javier Milei, líder das pesquisas atualmente, surgiu com uma solução mágica, a adoção do dólar como moeda oficial e fim do Banco Central argentino. Mas a verdade é que esse triste tango argentino começou no final dos anos 1990, com o presidente Carlos Menem, que foi uma espécie de Fernando Henrique Cardoso para nossos vizinhos.

A América Latina dos anos 1980 foi marcada por um problema em comum em quase todos os países da região, uma inflação excessivamente descontrolada e beirando o processo inflacionário – quando a moeda perde suas três funções oficiais (ser meio de troca, unidade de conta e uma boa reserva de valor presente para o futuro). De fato, as moedas da região serviam somente como meio de troca de bens de pouco valor (bens de alto valor como casas eram negociadas em dólar), e unidade de conta no dia a dia. Mas, nos anos 1990, todos os países resolveram seu problema inflacionário, e quase todos se utilizaram do mesmo mecanismo, o câmbio.

Os países latino americanos encontraram um cenário nos anos 1990 que não existia antes no mundo: uma grande abundância de dólares que entravam em suas economias e o perdão de suas dívidas a partir do Plano Brady. Então, a partir da segunda metade dos anos 1990, todos os países criaram ou reformaram suas moedas, lastreando o valor destas ao dólar. Isso fez com que a inflação finalmente fosse controlada, graças a um mecanismo que misturava uma concorrência estrangeira que evitava os preços dos bens domésticos de se elevarem junto com uma dolarização em diversos níveis de suas economias. Isso foi parecido com o que já havia sido realizado em outros cenários, como da Alemanha
dos anos 1920 e 1930.

Porém, o grau de dolarização foi diferente entre os países. No Brasil, por exemplo, mesmo com a paridade artificial sendo mantida no chamado 1 para 1 (um dólar valendo um real), o brasileiro não se utilizava de dólares em suas transações. Mas, na Argentina, a situação foi diferente. Lá os moradores foram permitidos a se utilizarem de dólares para as transações cotidianas. Além disso, foi feita uma emenda constitucional que garantia que todo argentino tinha direito de trocar pesos por dólares em bancos comerciais quando quisessem. A ideia não parecia absurda na época, mas, em pouco tempo, se mostrou um erro terrível.

Bastava uma crise cambial para isto dar problema. E isso foi o que ocorreu na Argentina nos anos 2000, logo após Menem eleger seu sucessor, Fernando de la Rua. Quando ocorreram desconfianças do mercado internacional sobre a saúde financeira da economia argentina, ocorreu uma verdadeira fuga de capitais, com bilhões de dólares saindo rapidamente da economia argentina. Nesse momento, os argentinos, que começaram a ir aos bancos procurar dólares para se proteger da crise financeira eminente, descobriram que para se trocar pesos por dólares era preciso que os bancos tivessem
dólares em seus cofres, e eles não tinham. A partir daí o argentino simplesmente deixou de usar o peso como moeda, e uma das principais crises inflacionárias mundiais começou.

O presidente Fernando de la Rua protagonizou uma das cenas mais icônicas do começo do século em sua fuga de helicóptero da Casa Rosada após ela ser cercada por manifestantes. A Argentina passou a ter 19 moedas paralelas correndo dentro de suas províncias, os chamados corralitos, e demorou anos para que os argentinos passassem a usar novamente o peso como moeda para suas compras rotineiras.

Porém, a adoração e o amor que o argentino tem pelo dólar nasceu aí e, desde então, sempre que tem alguma oportunidade, eles buscam adquirir essa moeda. Portanto, a crise argentina nasceu quando alguém decidiu dolarizar a economia, e até hoje os reflexos desta crise são sentidos.

E a solução para isso, segundo Milei, é repetir os erros do passado e dolarizar novamente o país. Mas agora de uma maneira mais radical ainda. E isso é a chave para uma catástrofe nunca vista antes em terras argentinas, tem tudo para ser uma verdadeira tragédia econômica. Como diria Marx, parece que realmente a história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa.

*Deborah Magagna é economista do ICL, graduada pela PUC-SP, com pós-graduação em Finanças Avançadas pelo INSPER. Especialista em investimentos e mercados de capitais

*André Campedelli é economista do ICL e professor de Economia. Doutorando pela Unicamp, mestre e graduado em Ciências Econômicas pela PUC-SP, com trabalhos focados em conjuntura macroeconômica brasileira

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