Espanto e indignação. Foi assim que a graduanda Maria do Bosque recebeu a notícia de que o primeiro curso superior de agroecologia oferecido pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) no Brasil será fiscalizado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST, em Brasília.
“Investigar o quê? Que pessoas têm terra para plantar alimentação saudável? Que possam criar um bezerro, uma vaca, para que tirar leite para comer? Investigar o quê? Que as pessoas hoje têm casa? Que as pessoas têm educação, direito a conhecimento? É uma investigação que não não tem sentido pra nós”, pontua a produtora agroecológica.
A agricultura é realidade no primeiro assentamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Alagoas, o Flor do Bosque, criado em 2007 no município de Messias (AL), e onde hoje vivem 35 famílias em uma área de 350 hectares.
“Nós podemos falar o antes e o depois da reforma agrária aqui no estado. Antes tudo vinha de fora. Só é possível hoje a gente abastecer as feiras livres, agroecológicas, produção orgânicas, com muita luta. Então sempre vai ser assim, o grande nunca vai querer que o pequeno tenha nada. Investiga os grande, por que não faz essa investigação?”, completa Maria do Bosque, de 44 anos.
Deputados da bancada ruralista aprovaram neste mês o requerimento de diligência nos assentamentos Ouricuri I, II e III, no município de Atalaia (AL).
A visita foi um pedido do Deputado Delegado Fábio Costa (PP-AL) e tem como objetivo “fiscalizar in loco” o curso de bacharelado em Agroecologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), ofertado pelo Pronera no Centro de Formação Zumbi dos Palmares, que fica em um dos assentamentos.
No requerimento, o delegado pontua que “uma visita presencial dos membros da Comissão permitirá que eles avaliem o local de funcionamento, a existência de alojamentos, se funcionam em imóvel próprio ou alugado”.
Dizendo ter recebido denúncias, o parlamentar alega ainda no pedido que “a classe comum de assentados” ficaria em um assentamento com estruturas muito inferiores ao de líderes do movimento.
“É uma falácia, eu posso dizer que é mentira. Porque isso não existe. Qualquer aluno que você venha entrevistar se perguntar qual é o tratamento que tem no centro de formação, pode confirmar. A tratativa que se tem é entre educandos, professores e a universidade. Então, o MST não tem envolvimento algum”, explica Margarida da Silva, bacharelanda do Pronera que vive no Milton Santos (Ouricuri I), um dos assentamentos que será fiscalizado.
A diligência ainda não tem data para ser feita, mas deve acontecer nos próximos dias. É preciso, primeiro, que os parlamentares que presidem a comissão comuniquem com até 72 horas quando a visita irá acontecer. A primeira diligência da CPI no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, terminou com o relator Ricardo Salles (PL-SP), invadindo as casas de militantes da Frente Nacional de Luta para fazer fotografias.
“A gente sabe que a CPI do MST nessa região, tanto para investigar os movimentos sociais, tanto pra fazer uma diligência nesses assentamentos, não tem fundamento nenhum. Vamos receber a diligência porque somos trabalhadoras. Vamos receber e mostrar que não há crime algum nos assentamentos de reforma agrária, que não existe qualquer coisa que eles possam investigar”, esclarece a dirigente estadual do MST.
O assentamento Milton Santos, onde vive Margarida, surge da falência da antiga Usina Ouricuri, em 1991, no município de Atalaia (Al). Nos anos seguintes, o MST organizou os trabalhadores demitidos para ocupar a sede da fazenda em 17 de junho de 1998 com 1.400 famílias, incluindo pessoas que viviam na zona urbana do município.
“Toda essa terra estava sendo grilada pelos fazendeiros da região. Além de ficar sem nenhum direito trabalhista, as pessoas que trabalhavam na antiga Usina Ouricuri foram expulsas dos seus locais de origem”, explica Margarida.
“Essa área era totalmente voltada ao monocultivo da cana-de-açúcar. Além do uso excessivo de veneno que exige a cana, os trabalhadores que tiveram seus direitos negados com a falência da usina pegavam das 6 da manhã às 6 da noite. Isso é trabalho análogo a escravidão”, complementa a sem-terra.
Estrutura adequada
O coordenador do Curso do Pronera da Ufal, Rafael Vasconcelos, também se surpreendeu com a diligência agendada pela CPI em Brasília e descreve as condições do centro de formação do MST, local das aulas teóricas e onde estão os dormitórios e o refeitório.
“A gente recebeu com surpresa. Na verdade, a gente ainda não entendeu muito bem quais as intenções. Mas acreditamos na força da resistência dos movimentos do campo, da organização. O que a gente percebe é que o serviço que é prestado atende as demandas para a execução do curso”, pontua Vasconcelos.
“Temos salas adequadas para aulas teóricas com datashow e equipamentos multimídias, alojamentos para o número necessário de estudantes, temos refeitório com uma comida ótima. Há laboratórios de informática, acesso a internet. A gente percebe que tem sido uma parceria fundamental para que o curso possa funcionar”, completa o coordenador do curso.
Margarida vai além e pontua que o Pronera tem sido a única possibilidade dos camponeses poderem ter acesso à universidade.
“Para nós, é uma surpresa muito grande saber que o Pronera será investigado. Porque, enquanto foi retirado o orçamento do Pronera, os deputados estão preocupados se tem alguma irregularidade onde está sendo acolhida a primeira turma, o orçamento do Pronera não foi orçado esse ano, nem os anos anteriores. Os deputados deveriam se preocupar é como está o orçamento para inserir mais trabalhadores nas universidades”, complementa a graduanda Margarida da Silva, que também é da direção estadual do MST.
O primeiro curso do Pronera
O primeiro curso superior em agroecologia pelo Pronera nasceu em 2018 pela parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a partir da demanda dos movimentos sociais do campo. E é um importante capítulo na luta pela educação do campo e pela Reforma Agrária em Alagoas.
Vindos de cinco estados do Nordeste Brasileiro, 50 educandos entre assentados da Reforma Agrária, indígenas e quilombolas, recebem aulas centradas na pedagogia da alternância. O método é simples: aprender e levar os conhecimentos para serem aplicados em seus territórios.
“Quando eu vou para a universidade, eu tenho responsabilidade com a minha comunidade. Qualquer conhecimento que eu tenho eu compartilho com eles”, sintetiza Maria do Bosque.
Margarida também confirma que tudo que aprende na universidade, coloca em prática em seu lote. “A gente tem feito adubação verde, defensivos naturais, utiliza as folhagens como matéria orgânica. Tudo que é feito na propriedade é produzido aqui, para que não venha nada de fora”, descreve a assentada do MST, especialista no cultivo da banana.
“Hoje você não vê cana-de-açúcar nesse assentamento, o que você vê são pequenos animais, bovinos, aves, suínos caprinos, galinhas. Você tem a macaxeira, o inhame, a banana”, completa.
Canaviais e pedreiras
A região da Zona da Mata Alagoana, onde ficam os assentamentos, é historicamente conhecida pelas condições degradantes de trabalho, principalmente nos canaviais e pedreiras. Em abril, o Brasil de Fato acompanhou com exclusividade o resgate de 44 trabalhadores da escravidão contemporânea em pedreiras no município de Murici (AL)
Segundo Maria do Bosque, a agroecologia, ensinada no curso do Pronera, representa uma alternativa à essa exploração dos recursos naturais e dos trabalhadores. A estudante, por exemplo, transformou o lote degradado pela cana em uma área repleta de flores, frutos e árvores nativas, com destaque para a experiência adquirida no cultivo de Plantas Alimentícias Não Convencionais.
Neste ano, ela foi premiada em solenidade da UFAL pelo trabalho Quero Panc: Um aplicativo para a popularização de Plantas Alimentícias Não Convencionais no estado de Alagoas.
“Eu venho de um processo de ex-escrava da cana. E o estado da Alagoas tem essa marca terrível que só a agroecologia pode tirar. Anteriormente era só cana, hoje o eucalipto começa a dominar. Também tem as pedreiras, que só beneficiam os grandes. Tem a pecuária, que pisoteia e machuca esse solo. E o curso da agroecologia traz esse viés de dizer que a saída é a diversidade. As pessoas se submetem a esse tipo de atividade que escraviza, porque são encurraladas”, explica a agricultora.
“Estamos em uma região empobrecida, e a culpada pelo empobrecimento desse povo nessa região foi o processo do monocultivo. Esse povo foi massacrado. Então a universidade hoje para nós é um sonho. E isso não pode parar”, completa.
Segundo Margarida da Silva, a reforma agrária e a agroecologia são ferramentas fundamentais para a mudança da matriz tecnológica no campo, e isso passa pela defesa dos movimentos sociais que atuam no direito à terra.
“Fazer parte de um movimento como o MST é a forma que nós, os pobres desse pais, temos para viver no campo com dignidade. Viver com dignidade é poder comer 3 vezes ao dia, é poder não ser escravo do latifúndio do agronegócio, é produzir comida, porque o que nós fazemos nas áreas de reforma agrária é produzir comida diversificada”, finaliza.