A pandemia de Covid-19 ocasionou um problema que deve se transformar em um tremendo abacaxi para muitas empresas ao redor do mundo. Com a mudança no comportamento de consumo, muitas delas estão enfrentando alta nos estoques de mercadorias. Para especialistas, a dicotomia entre oferta e demanda pode ser indicativo de que uma desaceleração econômica mundial está se aproximando, como já se tem notado pelos indicadores econômicos de nações ricas, como os EUA e países da União Europeia.
No Brasil, contudo, os níveis de estoques de mercadorias não estão muito diferentes do esperado. Mas o mesmo não ocorre no restante do mundo, principalmente nos países que mais sofreram com a crise sanitária.
É o que mostra reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, na semana passada, com base em dados da FactSet, os quais foram compilados pelo jornal japonês Nikkei. O levantamento mostra que os valores de mercadorias estocadas no mundo atingiram um nível nunca antes visto.
Sabe-se que a pandemia desorganizou as cadeias de suprimentos globais. Muitas indústrias tiveram suas mercadorias afetadas por falta de componentes, entre as quais o setor automotivo, que acabou produzindo menos carros devido à falta de insumos durante a pandemia, como os semicondutores. Com a reabertura econômica e a expectativa de normalização do consumo, muitas dessas empresas correram para refazer seus estoques. No entanto, o ritmo das vendas não acompanhou esse processo, principalmente devido à alta da inflação ao redor do mundo, o que corroeu o poder de compra das famílias.
Conforme o levantamento publicado no jornal Nikkei, o estoque de 2.349 companhias globais de manufatura chegou a um valor recorde de US$ 1,87 trilhão (R$ 10 trilhões) no final de março, uma diferença de US$ 97 bilhões (R$ 523 bilhões) em relação ao trimestre anterior. Trata-se do patamar mais altos em uma década.
Outro levantamento realizado pela Bloomberg, com empresas norte-americanas, mostra que grandes varejistas dos EUA, como Walmart, Home Depot e Target, têm quase US$ 45 bilhões (R$ 243 bilhões) em excesso de mercadorias, valor que corresponde um aumento de 26% em relação ao ano passado.
Ao analisar a situação, o economista do ICL André Campedelli disse que a situação de excesso de mercadorias num cenário de elevada formação inflacionária mostra que o discurso vigente, que atribui à inflação os excessivos gastos fiscais para atenuar os efeitos da crise econômica que veio com o começo da pandemia e, também, da grande quantidade de dinheiro criado durante o período do Quantitative Easing (política de elevada criação de dinheiro para ser utilizado como crédito e gasto fiscal realizado pelos EUA e Europa desde a crise de 2008), “é um tanto quanto falacioso”.
“O grande problema inflacionário hoje se dá pelo aumento dos custos de produção e de alimentos, vindos da alta dessas commodities nos mercados internacionais. Com um custo mais elevado do petróleo, aumenta também o custo de se produzir energia e de transportar mercadorias, o que afeta todos os preços em cadeia. Então, ao contrário do que dizem alguns analistas, a inflação atual é um problema de custos muito elevados e não de uma política fiscal ou monetária irresponsável nos últimos anos”, ponderou o economista do ICL.
Estoques de mercadorias crescem 17,7% nos EUA em maio
De acordo com o Departamento de Comércio americano, os estoques empresariais de mercadorias naquele país cresceram 17,7% em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Vale lembrar que, na semana passada, os EUA anunciaram inflação recorde no encerramento de junho. O indicador fechou a 9,1%, o percentual mais alto em 40 anos, em uma demonstração de que a situação para as empresas não deve melhorar, já que a inflação vem corroendo o poder de compra das famílias norte-americanas.
Apesar de as cadeias de suprimentos estarem melhores do que estiveram nos primeiros meses de pandemia, a situação ainda é complicada. Em maio, as vendas do varejo nos EUA caíram muito, refletindo, entre outros problemas, a mudança no perfil de gastos, que tende a migrar do consumo de bens para o de serviços com o afrouxamento das restrições sanitárias.
No começo da pandemia, a equação era a seguinte: as vendas diminuíram nos primeiros meses, depois, com a injeção de recursos ocasionada pelo pagamento de auxílios por parte do governo norte-americano às famílias, o consumo voltou razoavelmente, principalmente no e-commerce. Porém, problemas logísticos acabaram deixando muitas prateleiras sem produtos.
Devido ao temor de que problemas como aqueles pudessem gerar nova escassez de produtos, as empresas se anteciparam, disponibilizando mais oferta do que a demanda exige. O efeito dessa antecipação vemos agora, com os estoques altos.
Empresas como Costco, gigante de supermercados norte-americana, teve um salto de 26% nos estoques; a rede de departamento Macy’s apontou alta de 17%; e o Walmart registrou aumento de 36%.
Mais grave, esse problema não se restringe aos EUA. De acordo com a FactSet, a sul-coreana Samsung registrou alta de 13% em seus estoques, que passaram a US$ 39,2 bilhões (R$ 211 bilhões) em março, em relação ao fim do ano passado. O portal de tecnologia The Elec, da Coreia do Sul, mostrou que a companhia tinha, em junho, quase 50 milhões de smartphones parados em estoques de distribuidores, pois a demanda por celulares está menor que o esperado.
Brasil vive situação melhor em seus estoques de mercadorias
Embora o Brasil também tenha sofrido os efeitos dos gargalos logísticos durante a pandemia, o país sentiu menos seus efeitos do que outras nações. Dados da última sondagem industrial feita pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) mostram que, em maio deste ano, houve pequena redução nas mercadorias em relação ao mês anterior. O índice que acompanha a evolução ficou em 49,7 pontos. Valores acima dos 50 pontos indicam crescimento de mercadorias, enquanto abaixo apontam queda.
À reportagem da Folha de S.Paulo, o consultor em varejo Alberto Serrentino, da Varese Retail, disse que o cenário brasileiro é de razoável estabilidade em relação ao abastecimento de estoques, pois o país tem uma economia mais verticalizada, diversificada e pouco internacionalizada, que faz com que o país sofra menos com as rupturas na cadeia de abastecimento.
“Aquilo que, às vezes, é uma fragilidade nossa, de ser uma economia muito fechada e até um pouco ineficiente, em situações como essas se tornam grandes fortalezas”, afirmou o consultor ao jornal.
No Brasil, lojas como a varejista Magalu disseram à reportagem que está com níveis de estoque dentro da normalidade, com redução do saldo em mais de R$ 1 bilhão no primeiro trimestre de 2022, em relação ao fim do ano. “Nosso ajuste de estoque vem do fim do ano, o que nos coloca em uma posição bastante confortável”, disse Vanessa Rossini, gerente de relações com investidores da companhia.
Já a indústria automotiva relatou níveis de estoques elevados. Dados da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) mostram que, embora o fornecimento de peças ainda esteja irregular, o setor começou julho com o nível mais alto de estoques dos últimos dois anos. O problema, no entanto, é gerado por alta pontual na produção e não decréscimo nas vendas.
Redação ICL Economia
Com informações do jornal Folha de S.Paulo