Plantar alimento de verdade, semear e colher arroz orgânico, devolvendo águas não contaminadas ao meio ambiente, respeitando a dignidade de quem trabalha. São missões que famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) assumiram há mais de duas décadas e cujos resultados comemoram na 20ª edição da Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, nesta sexta-feira (17).
O local escolhido para a celebração deste ano do MST, que deve reunir 5 mil pessoas, é o assentamento Filhos de Sepé, em Viamão (RS). Foi lá que aconteceram as quatro primeiras edições da festa do MST, no início dos anos 2000.
Além de autoridades locais e delegações internacionais, ao menos cinco ministros confirmaram presença no evento: Wellington Dias, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência; Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência e Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas.
As cooperativas do MST são hoje responsáveis pela maior produção de arroz orgânico da América Latina e esperam colher cerca de 16 mil toneladas do grão. São 3,2 mil hectares de plantação, sob responsabilidade de 352 famílias de 22 assentamentos do Rio Grande do Sul. As principais variedades plantadas são o arroz agulhinha e o cateto.
Mas a celebração das conquistas coletivas do MST não esconde a luta e os desafios para que essa história continue. É preciso travar diariamente uma disputa territorial com o agronegócio que avança com a soja transgênica, que despeja agrotóxicos e contamina plantações orgânicas e que ameaça com violência assentamentos da reforma agrária.
Adversário agro
“Depois que o Lula falou lá no Jornal Nacional que somos os maiores produtores de arroz orgânico, falou do nosso arroz orgânico, foi assim, deu um boom. Mas, enfim, só que a gente agora ainda tem dificuldade”, conta Dioneia Soares Ribeiro, agricultora que planta o arroz orgânico no assentamento Lagoa do Junco, em Tapes (RS).
“Por conta do agronegócio, por conta da deriva dos agrotóxicos, nós perdemos muitas áreas de plantação orgânica. Elas não conseguem mais ser certificadas por causa dessa deriva dos agrotóxicos”, relata.
Ivan Carlos Prado Pereira, produtor de arroz orgânico do MST e presidente Associação dos Moradores do Assentamento Filhos de Sepé, relata dificuldades de financiamento da produção e escoamento do grão, a partir de 2017, o que impactou na redução da área plantada.
“O ataque do agronegócio nos últimos quatro anos foi muito forte. Nós passamos por dificuldades de financiamento, especialmente para o custeio da lavoura. Os bancos e as empresas estatais, como o Banco do Brasil, não queriam nos apoiar. Isso acontecia por conta dos ataques do agronegócio, que queria entrar e comprar nossas áreas”, conta.
Sem contar com as políticas públicas
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que chegou a ter investimentos de R$ 1,3 bilhão em 2012, encolheu para R$ 135 milhões em 2021. Também sofreram reduções orçamentárias o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Essas políticas públicas garantiam escoamento à comida agroecológica do MST.
A produção do arroz orgânico pelo MST foi diretamente impactada pelos cortes aplicados a partir da gestão de Michel Temer (MDB) e durante todo o governo de Jair Bolsonaro (PL). Se na temporada 2017/2018, o movimento registrava recordes com mais de 700 famílias envolvidas e mais de 6 mil hectares de arroz orgânico, na colheita seguinte, a área plantada caiu para 4 mil hectares e as famílias para cerca de 300.
“A nossa produção acabou indo praticamente a para a vala comum, o que significa que a valorização do nosso produto, o respeito à produção da agroecologia foi deixado de lado, foi abandonado. Quem dava muito aporte nisso era PAA, o PNAE, todos os programas de governo que adquiriam nossos produtos. Foi um impacto muito forte financeiro e social para as famílias”, avalia Ivan Pereira.
Mais do que a retomada dos investimentos nos programas citados, o técnico agrícola defende que a agroecologia receba os mesmos incentivos que o agronegócio recebe do Estado. “Ela não faz mal ao meio ambiente como a do agronegócio e ela também não prejudica a saúde. Além de ser uma produção orgânica é um programa de saúde para a população brasileira.”
Tecnologias e desafio da produtividade do MST
O enfrentamento à lógica do agronegócio não se dá somente pela não utilização de veneno nas lavouras, mas também pela formação de um ciclo produtivo próprio, com o maquinário necessário para o preparo da terra, o plantio e a colheita, a gestão das águas, as agroindústrias que beneficiam e preparam o arroz para a comercialização.
Para seguir aprimorando as tecnologias de produção e encontrar soluções criativas para os entraves da comercialização, o MST se associa a parceiros das universidades e instituições públicas. Exemplo dessa cooperação é o Programa Estadual de Produção de Arroz de Base Ecológica (Pepabe), que, junto de outras iniciativas, já tem apresentado resultados.
“A gente tem muita esperança de que com essa articulação institucional, com programas de extensão, com programas de pesquisa, os agricultores possam aprimorar esse conhecimento que eles desenvolveram ao longo do tempo”, explica o pesquisador Marthin Zang, assentado do Sepé Tiaraju. “Esse conhecimento de produção de arroz de base agroecológica é um patrimônio dos agricultores.”
Filho de um dos pioneiros no plantio do arroz orgânico, Zang explica que a técnica aprimorada ao longo das últimas décadas já permitiu atingir uma produtividade para cerca de sete mil quilos por hectare em alguns locais, bem acima da média histórica de cerca de cinco mil quilos de arroz orgânico colhidos em cada hectare de terra.
Para ele, a produtividade é sim importante, pois permite ofertar o arroz à maior quantidade possível de pessoas, mas não pode ser o único aspecto considerado para qualificar o sucesso de uma produção, como é para o agronegócio.
“Queremos conceber que a produção não é antagônica a conservação, desde que elas se conversem e a gente consiga de fato olhar para indicadores que vão para além da produtividade. Olhar para os indicadores ambiental e social com prioridade, não apenas ter como foco no ‘quanto eu vou ganhar’, mas também pensar quanto a qualidade do ar que eu respiro vai ganhar, quanta qualidade da água, quanto a qualidade do solo eu vou proporcionar.”
“O MST gravou no território brasileiro uma luta para mudar o sistema, para mudar a forma de distribuição da terra, o modelo fundiário. Mas, ao longo desses anos também mostrou que é possível fazer outra forma de agricultura”, conclui.