A crise humanitária dos yanomami escancarou um problema que ocorre nos rincões do Brasil, envolvendo uma indústria que comercializa ouro ilegal extraído de terras indígenas e unidades de conservação, principalmente na Amazônia brasileira. Na opinião de Sérgio Leitão, advogado especialista em temas socioambientais e diretor do Instituto Escolhas, as engrenagens desse setor marcado com sangue indígena e, também, de garimpeiros muitas vezes escravizados, encontra respaldo dentro da legislação brasileira e na falta de fiscalização de quem deveria fiscalizar a rota do metal precioso – neste último caso, o Banco Central do Brasil.
Em entrevista concedida à edição de quarta (15) do ICL Notícias, programa diário veiculado no YouTube, o advogado disse que “mais da metade ou, para ser mais exato, 54% por cento da produção brasileira de ouro em 2021, ou seja, estamos falando de 53 toneladas de ouro, são ilegais. É um ouro exportado para vários países. Para a gente ter uma ideia, no comércio bilateral entre Brasil e Suíça, 75% do que é exportado daqui para a Suíça é ouro. No comércio bilateral entre Brasil e Reino Unido, são 25%”, exemplificou.
O mercado de ouro no Brasil, segundo ele, movimenta US$ 5 bilhões por ano ou R$ 25 bilhões. “Quando você olha a área de garimpo hoje na Amazônia, ela já é maior do que área de mineração industrial no país, e eu estou falando de garimpo de ouro – 98% do garimpo na Amazônia é ouro”, frisou.
E como chegamos a esse estado de coisas? Segundo o especialista, uma conjunção de fatores propicia que esse negócio escuso, marcado a sangue, suor, lágrimas, morte e destruição, funcione sem interferências, algo que atingiu escala maior ao longo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que, por omissão, vontade e inépcia, promoveu o que o mundo entende hoje como um genocídio da etnia yanomami e a destruição da floresta.
“Na prática, o Brasil funciona como uma imensa lavanderia brilhante desse ouro que é extraído ilegalmente de terras indígenas e unidades de conservação. Está aí o exemplo de Roraima, porque se você tem mais de 20 mil garimpeiros dentro daquela terra, é um verdadeiro exército. Como é que as autoridades não têm um único registro de venda de ouro oriundo daquele estado? Isso significa que esse ouro está sendo escoado para outros lugares, para outros estados, inclusive para o estado de São Paulo, em função de uma situação que a gente tem hoje no Brasil que é o sistema perfeito de impunidade que se montou na legislação brasileira, o qual alimenta e retroalimenta essa máquina de destruição que é o garimpo na Amazônia”, apontou.
Segundo advogado, legislação e falta de fiscalização dificultam a rastreabilidade do ouro ilegal
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu os primeiros passos para desmontar essa “grande lavanderia faiscante”, como disse o diretor do Instituto Escolhas. Ele criou o Ministério dos Povos Indígenas e praticamente refundou órgãos sucateados no governo Bolsonaro, como a Funai (Fundação Nacional do Índio). Além disso, a Polícia Federal iniciou recentemente uma megaoperação contra o garimpo ilegal, cumprindo mandados de busca e apreensão contra suspeitos de integrar uma quadrilha envolvida na compra de ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A operação ocorreu na terça-feira passada (14), após a Justiça expedir 16 mandados de busca e apreensão. Também foram determinados bloqueios de bens de investigados.
Nesse imenso lamaçal envolvendo o ouro extraído ilegalmente, estão ao menos duas legislações que dificultam a rastreabilidade do metal precioso. Segundo Leitão, uma instrução normativa de 2001 (governo Fernando Henrique Cardoso) estabelece que a nota fiscal da comercialização do ouro seja em papel carbonado. Por isso, ele defende que essa legislação deveria ser modernizada, como a nota fiscal eletrônica que conhecemos, o que facilitaria investigar o caminho do ouro.
Mais grave, no entanto, é uma lei de 2013 (nº 12.844), de autoria do deputado federal do PT Odair Cunha (MG), que enfiou um jabuti (jargão parlamentar usado para descrever a inclusão de temas não relacionados à proposta original do projeto ou medida) numa medida provisória da ex-presidenta Dilma Rousseff, estabelecendo a presunção da “boa-fé” no comércio de ouro. Essa presunção é apontada como determinante para o avanço do garimpo ilegal.
O texto original, no qual essa emenda foi incluída, era uma medida provisória (MP) que tratava de seguro agrícola, tema sem nenhuma relação com a extração mineral.
“[a lei] permite que a pessoa vá a um PCO [posto de compra de ouro], que geralmente fica próximo da cidade onde se faz o garimpo, levando o ouro e quem compra não faz a pergunta para saber de onde ele veio. Então, essa compra parte do princípio de que foi feita de ‘boa-fé’, criando um sistema de proteção com base na autodeclaração da boa-fé. Para punir alguém nessas circunstâncias, o volume de investigação é muito alto, porque precisa ter um volume grande de provas irrefutáveis para mostrar a ilegalidade”, explicou o diretor do Instituto Escolhas.
Mas a cadeia do ouro ilegal não para por aí. As DTVMs (Distribuidoras e Títulos e Valores Mobiliários) são consideradas um elo vital para o funcionamento desse mercado, pois é por meio delas que se “esquenta” o metal extraído ilegalmente. Os trâmites nesse tipo de operação funcionam da seguinte maneira: o garimpeiro irregular apresenta uma permissão de lavra forjada a essas instituições e, em contrapartida, saem com a nota fiscal que torna o produto legal para ser transportado e negociado.
Um estudo divulgado recentemente pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) apontou que ao menos cinco DTVMs estão sob suspeita de comercializarem ouro extraído pelo garimpo ilegal em terras indígenas brasileiras. O metal extraído de maneira irregular pelo garimpo é legalizado no sistema financeiro por essas instituições, que podem se especializar em compra e venda de ouro e operam com autorização do Banco Central.
Como envolve mercado financeiro, o ente responsável pela fiscalização deveria ser o BC, que falha nesse processo. “Notadamente, nós temos chamado a atenção para o papel que o Banco Central deveria fazer. Nós estamos falando de instituições do sistema financeiro, uma DTVM é uma distribuidora de títulos e valores mobiliários que é quem pode fazer a compra desse ouro, que é considerado pela legislação um ativo financeiro. Ou seja, paga, portanto, muito menos impostos do que outros minérios que são considerados normalmente como mercadoria, e esse sistema perfeito de impunidade deu o resultado que infelizmente estamos vendo hoje nas manchetes do mundo inteiro que é o genocídio do yanomami”, disse Leitão.
Por tudo isso, ele defende que esse setor seja refundado e que as pessoas parem de comprar ouro e fundos de investimentos que tenham lastro no ouro, pois hoje é difícil mensurar a legalidade desse mercado. “Tudo é misturado com sangue, suor, lágrimas, sofrimento, morte, doenças. O retrato hoje é o descontrole absoluto”, disse. “Quem está comprando joia e investindo em fundos com lastro no ouro está levando para a sua casa e para o seu bolso o sangue dos índios brasileiros”, alertou.
Redação ICL Economia
Com informações do ICL Notícias