Surpreendentemente, quem disse que Javier Milei poderia ser para a Argentina um desastre pior que Jair Bolsonaro foi para o Brasil não estava completamente errado. Mas é importante salientar que, ainda que os dois sejam filhotes da ultradireita, aqui, quem segurou as rédeas do capitão foram as instituições erigidas sob a democracia.
Fale bem ou fale mal, o STF (Supremo Tribunal Federal) conseguiu conter boa parte da sanha do ex-mandatário, além da oposição no Congresso e da mobilização de organizações da sociedade civil.
Voltando à Argentina, pelo menos na história recente, não se viu o que se tem acompanhado no país vizinho: um presidente recém-empossado lança, a cada semana, capítulos de um pacotaço do arrocho com vistas a lhe dar plenos poderes, com impactos principalmente na vida daqueles que já têm sofrido há pelos menos duas décadas com os sobressaltos de uma economia para a qual não parece haver solução no curto e médio prazos.
O que muito provavelmente Milei não contava era com a reação das ruas (ou contava?). Mal assumiu o poder, o economista anarcocapitalista tem enfrentado uma onda de manifestações, pois, ao contrário dos brasileiros, a Argentina é terra de piqueteiros. Há também muitos panelaços (cacerolazos, em espanhol).
Agora, você pode estar se perguntando, mas o que o Brasil tem a ver com isso? Muita coisa. Para começar, a Argentina é um importante parceiro comercial do Brasil. Também era um forte aliado no fortalecimento das ações em bloco, via Mercosul. A relação Brasil-Argentina é importante para os países vizinhos também. Ou seja, se a economia lá vai mal, é ruim para todo mundo por aqui. A instabilidade na região, em um mundo já em convulsão, é ruim para a geopolítica local.
Para se ter uma ideia, há dez anos, o Brasil exportava US$ 19,6 bilhões para a Argentina, enquanto as importações somavam US$ 16,4 bilhões. Em 2022, as duas variáveis foram de US$ 15,3 bilhões e US$ 13,1 bilhões, respectivamente.
A balança comercial entre os dois normalmente é positiva para o lado do Brasil — no geral, o valor exportado para o país vizinho é maior em relação ao importado. Em 2019, de forma incomum, esse equilíbrio pendeu para a Argentina, quando o vizinho teve um superávit na relação econômica.
Javier Milei: golpe atrás de golpe
Durante a campanha, Milei fez várias ameaças, ofendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desdenhou do Mercosul e das relações com a China, uma atitude bastante controversa – para dizer o mínimo – partindo de um país cuja economia está em frangalhos.
Hoje, em carta enviada ao Brasil, o presidente argentino de ultradireita começou a concretizar suas ameaças. Milei expressou a intenção de recusar a entrada de seu país do Brics, coalizão de países emergentes que tem, além de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
No documento, revelado pela GloboNews, Milei afirmou não considerar “oportuna” a adesão ao bloco. Em agosto deste ano, a Argentina e outros cinco países foram convidados a se unir ao Brics. Caso aceitasse o convite, a adesão formal ocorreria a partir de 1º de janeiro de 2024.
“Algumas decisões tomadas pela gestão anterior (do ex-presidente Alberto Fernández) serão revisadas. Entre elas, encontra-se a criação de uma unidade especializada para a participação ativa do país (Argentina) no Brics (…)”, escreveu Milei.
Outra medida tomada esta semana trata de um pacote de leis enviado ao Congresso, que estabelece uma nova matriz econômica na qual o livre mercado é a regra e a intervenção do Estado fica limitada à exceção. O que Milei deseja é implementar o Estado mínimo do mínimo, deixando o mercado tomar conta de tudo anarquicamente.
São 664 artigos que, combinados com os 366 decretos da semana passada, definem as mais de mil alterações que o novo governo quer para a sua pretendida “revolução liberal”.
Entre as medidas está instituir uma espécie de Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e a privatização do ensino universitário, atualmente gratuito.
Segundo informações do G1, há mais de 10 mil estudantes universitários brasileiros na Argentina. A maioria está em Buenos Aires e estuda Medicina na universidade pública e gratuita. Se o pacote de Milei for aprovado, as universidades ficam habilitadas a cobrar de todos os estrangeiros que não tiverem a residência.
Reforma do Estado impingindo dois anos de sofrimento
O pacotaço enviado por Milei ao Congresso se chama “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”. Trata-se de um calhamaço de 183 páginas, com artigos que incluem mudanças e maior controle sobre os cargos da administração pública.
Há proposta de emergência pública em diversos setores até 2025, abrangendo aspectos econômicos, financeiros, fiscais, de seguridade social, segurança, defesa, tarifas, energia, saúde, administrativas e sociais.
Conforme o texto, esse prazo poderia “ser prorrogado pelo Poder Executivo nacional pelo prazo máximo de DOIS (2) anos”. Na prática, isso significa que, se essa norma for aprovada, Milei teria durante os seus quatro anos de governo o poder de decidir sobre todas essas questões, sobre as quais hoje só o Parlamento pode legislar.
Então, ele teria em suas mãos o poder do Executivo e do Legislativo, uma proposta polêmica que tem poucas chances de ser aprovada pelos parlamentares do partido governista A Liberdade Avança, que são minoria no Congresso.
No pacote, a privatização de todas as empresas públicas volta a ser alvo de Milei. O tema também foi tratado no megadecreto da semana passada, o polêmico Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), com o qual o Poder Executivo pretende modificar ou revogar 366 leis que regulam diversos setores da economia. A justificativa do atual governo é de gerar “maior eficiência econômica”.
O texto sugere ainda que haja uma espécie de “voto distrital” semelhante ao que ocorre nas eleições legislativas nos Estados Unidos.
Além disso, o projeto sugere endurecer penas a manifestantes. Conforme publicado no jornal El Clarín, o texto aponta uma indicação de mudança no artigo 194 do Código Penal argentino, que inclui pena de dois a cinco anos de prisão para quem liderar protesto que impeça “a circulação de transporte público e privado”.
Segundo o texto, protestos deveriam passar por aval de um órgão federal. Outro trecho trata ainda da obrigatoriedade de manifestantes informarem ao Ministério da Segurança da Nação toda “reunião ou manifestação”, às quais o governo poderia se opor se fossem temas interpretados como riscos à “segurança das pessoas ou à segurança nacional”.
Desde que tomou posse, os argentinos têm convivido com a remarcação diária de preços, que tem inviabilizado negócios e, principalmente, afetado o bolso da população mais pobre.
No país, a pobreza atinge mais de 40% da população. São 11,8 milhões vivendo na pobreza, segundo dados levantados pelo governo anterior.
Resta saber se os argentinos vão resistir ou se quem não vai resistir no cargo é Milei.
Redação ICL Economia
Com informações das agências de notícias e do G1